"Há 70 anos entramos no Antropoceno" | Museu do Amanhã

Entrevista com Colin Waters: "Há 70 anos entramos no Antropoceno"

Observatório do Amanhã

 

"Há 70 anos entramos no Antropoceno", diz cientista britânico

Waters é porta-voz de grupo da comunidade científica que defende que formalização geológica da “Era dos Humanos” é importante pra entendermos o legado que deixamos no planeta

Os indícios são cada vez mais visíveis: mudanças climáticas ameaçam regiões costeiras e a biodiversidade em vários lugares; as emissões de dióxido de carbono já mudaram a composição da atmosfera terrestre; vestígios de plástico, alumínio, concreto e outros materiais deixam sua assinatura nas paisagens de todos os continentes. Somos testemunhas do nascer de uma nova época geológica. Ao menos essa é a ideia que muitos geólogos e pesquisadores querem propor à comunidade internacional. Um dos braços da Comissão Estratigráfica Internacional (e, portanto, da União Internacional de Ciências Geológicas), o Grupo de Trabalho sobre o Antropoceno (AWG, na sigla em Inglês), defende que a ação humana tem se tornado uma força geológica comparável aos vulcões - principalmente da década de 1950 em diante.

Para o cientista britânico Colin Waters, secretário do AWG e, “já mudamos o planeta, e estas mudanças serão permanentemente expressas nas rochas no futuro”. Em entrevista por telefone ao Observatório do Amanhã, Waters advogou que entramos no Antropoceno há 70 anos - o termo vem do grego “Anthropos” (homem) e “cenos” (novo). Ele fala como membro do grupo que diz que não estamos mais vivendo no Holoceno, atual época geológica oficial que se iniciou há pouco menos de 12 mil anos. 

Professor honorário da Universidade de Leicester, no oeste da Inglaterra, o pesquisador enfatizou que a formalização da “época dos humanos” é importante porque “mostra a extensão do nosso impacto sobre o planeta a ponto de estarmos deixando um legado permanente da nossa existência”. A formalização do termo é objeto de intenso debate na comunidade científica e traz consigo implicações políticas e econômicas. Foi um dos temas em discussão durante o 35º Congresso Geológico Internacional, que acontece a cada quatro anos – o último deles tendo ocorrido na Cidade do Cabo, África do Sul, entre o fim de agosto e início de setembro de 2016. 

Museu do Amanhã - Afinal de contas, o que é o Antropoceno?

Colin Waters - Há muitas interpretações sobre o que isto vem a ser. Como geólogos, estamos olhando para mudanças ambientais que aconteceram em intervalos pelos últimos 4,5 bilhões de anos – expressas em rochas. Desde o início do Holoceno, cerca de 11.700 anos atrás, temos vivido em um ambiente bastante estável. Tem havido um clima muito amigável; é o intervalo de tempo no qual prosperamos enquanto espécie e ocupamos um nicho dominante planeta afora. 

Mas alguma coisa aconteceu depois disso, provavelmente em meados do século XX, quando toda a escala da nossa influência no planeta mudou radicalmente. E vemos isso por uma infinidade de sinais, sejam por materiais novos como plástico, concreto, cinzas de combustível de usinas de energia ou novos elementos químicos. Produzimos novos poluentes, como o DDT, inseticidas, e, ao mesmo tempo, lançamos uma quantidade imensa de gases de efeito estufa na atmosfera pelo nosso consumo de hidrocarbonetos – e tudo isso mudou a Terra profundamente em um período muito curto de tempo. 

Para nós, é isso que o Antropoceno realmente representa – uma mudança física no planeta, que experimentamos mas de que somos causa ao mesmo tempo – e muitas destas mudanças ficarão permanentemente escritas nas rochas, que vão gravar a história do nosso tempo no planeta. Este registro inclui a forma como modificamos a abundância e a distribuição de outras formas de vida no planeta também. 

Por que não conseguimos nos decidir sobre um ponto de início?

Ler um registro geológico não é como um experimento científico em que você tem uma hipótese, a testa em laboratório e usa os resultados para chegar a uma determinada solução. Examinar o possível início do Antropoceno requer a interpretação de múltiplas opções de muitos sinais ambientais diferentes e potenciais datas de início – por fim, com o objetivo de escolher a melhor solução – ou o que parece o melhor marcador para permitir a correlação global da soma destas mudanças ambientais. 

Somos capazes de mudar o mundo numa escala muito maior agora do que éramos há poucos séculos. Vivemos muito mais agora do que em décadas anteriores; usamos um maquinário imenso que consegue movimentar quantidades enormes de terra. Todas estas mudanças se focam numa “Grande Aceleração” no nosso impacto global durante a segunda metade do século XX e se tornaram um marcador muito visível da forma como como somos capazes de modificar o planeta em nosso próprio benefício. 

Penso que, porque tudo isso aconteceu bem depressa, a fronteira que veremos nos sedimentos ou em gelo glacial coincidindo com a metade do século XX será marcada por um grande número de assinaturas ambientais que vão parecer ter mudado em um instante – quando comparadas com a escala de tempo geológica. Alguns geólogos argumentam contra a definição do Antropoceno porque é um intervalo de tempo muito curto comparado com os milhões de anos que são típicos de outras épocas geológicas. No entanto, a duração não é necessariamente o mais importante – é o tamanho e a rapidez na mudança das assinaturas que começaram no meio do século XX que torna aceitável que nós estejamos há apenas 70 anos nisso que consideramos como o Antropoceno. Acho que podemos dizer que, não importa o que aconteça no futuro, já mudamos o planeta a ponto de que uma mudança fundamental será permanentemente expressa em rochas – e isso será visível para sempre como um sinal abrupto na geologia.  

O significado de “Antropoceno” é “época dos humanos”. Mas estamos mesmo falando de uma “época humana”? Não seria a época de um determinado modelo de desenvolvimento socioeconômico?

Enquanto espécie, somos capazes de decidir “tirar tanto carvão quanto quisermos do solo, ao custo de aumentarmos as emissões de gases de efeito estufa”, mas ao mesmo tempo podemos decidir não fazê-lo, podemos escolher deixar o carvão no solo e usar energias renováveis. Então, acho que a lógica no uso do termo “novos humanos” tem a ver com a nova forma humana de controlar o ambiente do planeta ao invés de apenas influenciá-lo à maneira que nossa espécie fazia durante o Holoceno. 

Se o Antropoceno está associado a um modelo de desenvolvimento? Em alguns aspectos, pode-se dizer que “sim, está”. Porque houve esse intervalo depois da Segunda Guerra Mundial em que desenvolvemos uma globalização da economia de forma que somos capazes de cultivar ou extrair minerais de um país e transportá-los a outro para que sejam consumidos em grande quantidade. E isto é muito indicativo do desenvolvimento socioeconômico que aconteceu nesse período de 70 anos, que está ocorrendo a uma escala sem precedentes. É a história desse consumo largamente expandido da nossa época que deixou (e continua a deixar) seu legado no registro geológico.

Então não trata-se apenas de profundidade, mas também da extensão do impacto humano.

Não apenas da extensão, mas da magnitude da mudança. Por exemplo, o dióxido de carbono na atmosfera no fim da última Era do Gelo estava a 250 partes por milhão (a cada um milhão de moléculas de ar, 250 eram de dióxido de carbono). Isso aumentou consideravelmente desde a Revolução Industrial, mas especialmente pelo último século – agora, já estamos a 400 partes por milhão. A magnitude dessa mudança é tão dramática, aumentando a uma taxa mais de 100 vezes mais depressa do que no início do Holoceno, há 11.700 anos, que consideramos que este estado significativo de mudança é comparável ou maior do que vimos no passado – e é isso que nos leva a considerar este novo intervalo geológico. 

Aliás, você acha que pode ser possível conciliar capitalismo e desenvolvimento sustentável?

Esta é uma pergunta que foge da minha experiência como geólogo. Nosso trabalho sobre o Antropoceno, no fim das contas, se concentra em sinais encontrados em sedimentos e em gelo glacial e em como eles podem se correlacionar de uma parte do planeta à outra. Não é necessário saber como estes sinais foram criados para que tenham importância como marcadores geológicos. Mas, ainda assim, é interessante entender o processo pelo qual eles foram formados. 

Suponho que a principal causa do Antropoceno foi a globalização das economias e o consumo aumentado de materiais e bens como combustíveis fósseis, minerais, comida, a uma amplitude da qual podemos dizer que teve um impulso capitalista. 

O termo foi proposto pelo ecologista Eugene Stoermer nos anos 1980 e popularizado pelo químico Paul Crutzen nos anos 2000. O que significa este debate no entorno do Antropoceno, sendo feito agora? Por que agora?

Acho que, em certa medida, podemos considerar que o impacto que temos sobre o planeta só se tornou de fato significante nos últimos 60, 70 anos. Quando comecei minha carreira como geólogo, nos diziam que os humanos não tinham impacto significativo sobre o planeta -- que era tão grande, e seus processos geológicos, tão vastos, que qualquer coisa que fizéssemos teria uma marca muito pequena. 

Mas provavelmente não foi até a década de 1970, quando os primeiros satélites circulavam o planeta monitorando o ambiente – e começamos a captar dados em tempo real – que fomos capazes de medir a mudança no clima, mudanças na camada de ozônio, as taxas de desmatamento e de derretimento das calotas polares. Começamos a entender que o planeta, como um todo, se comportava simbioticamente como um sistema único. Então, fica claro que, se começarmos a mudar a atmosfera lançando mais gases de efeito estufa sobre ela, teremos repercussões não apenas na química atmosférica, mas também no aumento da temperatura, nível e acidificação dos oceanos. 
 
Acho que a popularidade do Antropoceno enquanto conceito e termo veio no tempo certo porque coincide com o nosso reconhecimento da mudança climática, poluição ambiental em larga escala e perda de espécies, por exemplo. O Antropoceno consegue englobar todas estas mudanças. Estamos muito interessados na perda de espécies, na mudança da quantidade e distribuição de animais domésticos e plantas cultivadas, na evidência das mudanças climáticas, na geração de novos minerais e materiais como plástico e concreto – tudo isto é relevante para a ciência do Antropoceno. 

E o que o termo faz é sintetizar toda esta informação, vinda de diferentes campos científicos, e apresentá-la em um único conceito. Isso permite às pessoas entenderem que tudo o que fazemos tem um certo impacto sobre o planeta. Se eles são positivos ou negativos, não é exatamente o ponto mais importante da pesquisa, mas é importante que as pessoas saibam que o que fazemos tem impacto, e que as repercussões podem ser maiores do que aquilo que vemos à nossa volta. Que o uso de fertilizantes nos nossos campos possa causar o aumento de algas nos oceanos, diminuindo o oxigênio disponível a ponto de causar zonas mortas – esta é uma repercussão que não é inicialmente óbvia e só foi descoberta recentemente. Mas agora conseguimos quantificar a escala desses impactos com a ciência que está sendo feita globalmente. Acho que, no fim, talvez apenas nos últimos 20 anos tenhamos conseguido juntar informação necessária para começar a compreender o Antropoceno completamente – e produzimos novas informações que nos ajudam a refinar nosso entendimento disso num ritmo crescente. É por isso, acredito, que o termo se tornou tão popular. 
 

O termo ainda não foi formalizado mas tem sido amplamente utilizado. Por que, então, a briga pela formalização? O que muda na vida das pessoas se esta nova época for formalizada?

Periódicos científicos vão aceitar artigos que falam de um Antropoceno há 10 mil anos – que pode ser bem diferente de um Antropoceno há 70 anos, que o AWG em sua maioria prefere. A ciência requer definições rigorosas – precisamos ter uma definição padrão sobre o que é um centímetro, um quilograma... porque se não a tivermos, caímos em um caos porque as pessoas não terão meios de descrever medidas absolutas de maneira consistente. Do mesmo modo, sentimos que precisamos ser igualmente rigorosos no uso do termo – que, por aparecer na escala geológica, as pessoas vão entender que “esta é a definição da unidade, aqui é quando ela começou” – e daí vamos compartilhar uma linguagem comum. Se as pessoas usarem o termo da maneira que quiserem, ele perde seu rigor e talvez venha até a deixar de ser usado, porque já terá perdido seu sentido para falar do impacto humano no planeta. 

O Antropoceno tem mais a ver com o entendimento que ele dá de que, enquanto espécie, estamos deixando um legado duradouro sobre o planeta. Tem a ver com nosso impacto no consumo de combustíveis fósseis, minerais – e uma demanda cada vez maior por produtos. Muitas pessoas associam o Antropoceno a uma mudança para pior. Mas nunca vivemos tanto ou prosperamos tanto enquanto espécie. Porém, tudo isso vem atrelado a um custo -- a mudança que fazemos sobre o planeta. Então, o

Antropoceno enquanto termo encapsula este impacto. Para muita gente, isso é algo importante de se entender porque, em muitos aspectos, não apenas no das mudanças climáticas, temos tido um impacto grande sobre os animais e plantas do planeta, e também mudamos dramaticamente a atmosfera e os oceanos. E estas são coisas pelas quais todo mundo está criando interesse, e este termo nos permite compreender como tudo isto está inter-relacionado.

 

Entrevista: Meghie Rodrigues e Davi Bonela - Pesquisadores do Observatório do Amanhã

Edição:  Emanuel Alencar - Editor de Conteúdo do Museu do Amanhã

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