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O ser humano de
todos os tempos:
o imperativo da sustentabilidade como caminho
para um futuro possível
- Sérgio Besserman é economista e ambientalista, presidente do Instituto Municipal de Urbanismo Pereira Passos, da Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro, professor do Departamento de Economia da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), membro do conselho diretor do WWF-Brasil e presidente da Câmara Técnica de Desenvolvimento Sustentável e Governança Metropolitana do Rio de Janeiro. Comentarista de sustentabilidade da GloboNews e da cidade na Rádio CBN, foi presidente do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em 1999, época em que também era membro da Comissão Interministerial de Mudança Climática. Antes, ocupou diversos cargos no BNDES a partir de 1987, quando foi chefe de Gabinete da Presidência, superintendente de Planejamento e diretor da Área de Planejamento.
Sigmund Freud certa vez disse que a humanidade cresce quando cai do pedestal, quando é atingida em suas feridas narcísicas. Segundo ele, isso havia acontecido com Galileu Galilei (a Terra é um pequeno ponto entre bilhões e bilhões de galáxias), com Darwin (somos parte da história da evolução pela seleção natural) e com ele mesmo, Freud (o inconsciente nos move mais que os processos mentais conscientes).
Stephen Jay Gould, o grande paleontólogo e divulgador da ciência no século XX, acrescentou: “Agora está na hora de cairmos de um outro pedestal, com a descoberta do tempo longo.” De fato, a humanidade é muito poderosa no seu tempo curto, mas não tem poder algum no tempo longo da natureza ou no tempo longuíssimo do Cosmos. Na escala temporal do planeta, de centenas de milhões de anos, a humanidade é completamente impotente para gerar dano significativo à natureza. Para ilustrar, basta lembrar que há 65 milhões de anos, quando o asteroide caiu na península de Yucatán, no México, dando o golpe final no processo de extinção de espécies iniciado alguns milhões de anos antes, gerou um impacto muitas e muitas vezes superior a todo o arsenal nuclear hoje existente.
Mas essa não foi a única perda de biodiversidade em grande escala na história: entre as várias existentes, cinco são conhecidas como as grandes extinções. Esta a que nos referimos foi a grande extinção do término do Cretáceo, famosa por ter tido sua principal causa descoberta, o asteroide, e também pelo conhecido fim dos dinossauros – exceto de seus descendentes voadores, as aves. Agora, se compararmos os poderes destrutivos da humanidade à grande extinção do fim do Permiano, por exemplo, que há cerca de 235 milhões de anos causou o desaparecimento de 10% das espécies marinhas e 70% dos vertebrados terrestres, nota-se como a força humana fica ainda mais reduzida.
E se acrescentarmos o fato de estarmos no topo da cadeia alimentar, deduz-se facilmente qual seria o desfecho da humanidade no caso hipotético de que ela presenciasse qualquer um desses eventos. Mesmo com todas as forças e poderes de que dispomos hoje, certamente não sobreviveríamos. Assim, mesmo que a humanidade tenha desenvolvido um ingênuo sentimento de onipotência, graças ao aumento do seu poder sobre a natureza, na escala do tempo longo o Homo Sapiens não tem força ou capacidade para gerar um dano notável ao planeta. Provocaríamos, no máximo, mais uma grande extinção, ao final da qual uma nova era, com uma nova biodiversidade, surgiria (calcula-se entre 5 e 10 milhões de anos o tempo de recuperação da natureza após cada uma das cinco grandes extinções).
A consciência e a preocupação com o meio ambiente não deveriam, portanto, ser vistos como mera decorrência de uma postura paternalista em relação ao meio natural, mas, ao contrário, como fruto do reconhecimento de nossa impotência e dependência com relação à casa onde moramos, a Terra.
O risco de extinção que pesa sobre o futuro diz respeito menos à natureza do planeta que à humanidade.
Se nos perguntamos qual a extensão e a profundidade do risco a que está sujeita a civilização, a resposta é limitada: até onde é possível saber, não se configura uma perspectiva de apocalipse ou catástrofe insuperável. Mas é justamente por não se saber ao certo “até onde é possível saber” que não podemos nos tranquilizar. A incerteza deveria ser o indicativo suficiente de que estamos num caminho insustentável para o desenvolvimento da espécie humana.
A avaliação que permitiria entender se o rumo atual da humanidade é ou não sustentável deveria ser feita no contexto de uma análise de risco essencialmente igual à que cada indivíduo utiliza no seu dia a dia, ou à que empresários utilizam ao tomar decisões relacionadas a seus negócios.
A perspectiva da insustentabilidade se confirmaria não apenas pelo que sabemos, mas, sobretudo, pelo que não sabemos. Em sua dimensão conhecida, as estatísticas tornam a crise ambiental do século XXI evidente. Indicadores sugerem cenários com forte tendência à degradação da capacidade de renovação natural dos serviços fundamentais à qualidade da vida humana em velocidade condizente com as taxas previstas para sua utilização (clima, água doce, solos férteis, biodiversidade).
Entretanto, pouco sabemos sobre a liberação de metano que o aquecimento global pode provocar no solo congelado da Sibéria, conhecido como permafrost, onde são imensos os estoques desse poderoso gás de efeito estufa. Tampouco conhecemos a fundo a dinâmica dos mantos de gelo da Groenlândia e da Antártida, o que é determinante para os cenários de elevação do nível do mar. Da mesma forma, somos ignorantes sobre a resiliência do atual equilíbrio ecológico e a taxa brutal de extinção das espécies. Como se vê, podemos estar gerando processos irreversíveis que trariam consequências potencialmente catastróficas para a civilização e a espécie humana. Para qualquer mentalidade racional, o princípio da precaução é imperativo aplicável.
De outro lado, pode-se afirmar que o modelo de desenvolvimento atual é insustentável, pois não apenas desconhecemos o verdadeiro significado do conceito de “desenvolvimento sustentável” como não sabemos medir a noção de sustentabilidade com precisão. Há muitos esforços importantes sendo despendidos para que nos aproximemos de melhores mensurações da ideia de sustentabilidade. A medição do Produto Interno Bruto (PIB) dos países está sob implacável crítica por suas grandes fragilidades. A forma insuficiente e equivocada com que os recursos naturais são considerados nas contas nacionais é uma das principais razões dessa crítica. Também a Comissão de Estatística das Nações Unidas tem promovido, com instituições nacionais, a elaboração de uma família de indicadores de desenvolvimento sustentável. Enfim, muitos indicadores sintéticos e outras formas de avaliar a sustentabilidade do desenvolvimento atual estão sendo aprimorados.
Por esses motivos, uma reflexão profunda sobre a expressão “desenvolvimento sustentável da humanidade” é a maior riqueza que os seres humanos podem ter hoje em suas mentes e corações. Caberia a nós problematizar essa expressão em todos os seus termos – humanidade, desenvolvimento e sustentável –, uma vez que o conceito ainda soa como uma rica incógnita a ser explorada.
Do termo “humanidade” deve-se dizer que esta só existe em abstrato. O que existe na realidade concreta e faz parte da constituição, inclusive genética, do Homo Sapiens são os clãs, as tribos, as nações. Um homem que pense, tome decisões e aja em função do destino futuro, não imediato, da humanidade já será um humano diferente, reconstruído pela cultura em relação aos humanos de hoje.
Quanto a “desenvolvimento”, lembremos que a identificação entre esse termo e crescimento econômico, avaliado quantitativamente, foi apenas o produto de uma época histórica em fase de superação. A inclusão de objetivos mais amplos na perspectiva humana, como expresso no Índice de Desenvolvimento Humano (IDH – criado pelo Prêmio Nobel de Economia Amartya Sen), é um grande avanço, mas ainda não incorpora os desafios maiores da questão do desenvolvimento sustentável. Finalmente, o significado de “sustentável” vai além de algo apenas duradouro, como o senso comum costuma entender, e significa muito mais que o compromisso com as futuras gerações. Do mesmo modo que a consciência humana, o termo “sustentável” diz respeito ao tempo, não o tempo curto – o da espécie humana –, mas todos os tempos, inclusive o longo – o do Cosmos. E o que distingue os humanos na natureza senão a consciência?
A onipotência de uma humanidade que vive ainda sua infância e que desconhece, como sociedade, a existência de limites, precisaria ser superada. A civilização humana precisaria ser mais “consciente”.
Até pouco tempo, a expectativa de vida dos seres humanos era baixa e nosso impacto ecológico era restrito tanto no que se refere ao espaço quanto ao tempo. No período anterior à Revolução Industrial, quando se deram os primeiros impactos relevantes da ação humana sobre o planeta, as consequências foram locais: espaços insalubres, rios poluídos, o ar das cidades contaminado. Com o crescimento econômico, as consequências se tornaram regionais: toda uma bacia hidrográfica prejudicada, um bioma inteiro (como a Mata Atlântica) devastado. Há cerca de cinco décadas essa escala se alterou e as agressões ambientais tornaram-se planetárias. Agora nosso impacto é global e suas consequências se estendem por séculos. Hoje, por tamanha alteração na paisagem do planeta decorrente das ações humanas, consagra-se na ciência o termo Antropoceno para designar a atual era geológica.
Se nos últimos trezentos anos houve um desenvolvimento extraordinário que aumentou a expectativa de vida, reduziu a mortalidade infantil, educou populações, diminuiu a violência e fez aumentar em muito o bem-estar do ser humano, devemos estar atentos aos numerosos problemas não resolvidos: a pobreza de bilhões de pessoas, a enorme desigualdade, a permanência de inúmeras agressões aos direitos humanos fundamentais, a existência de países onde não há liberdade democrática e, ainda, a permanência da discriminação étnica, por orientação sexual ou de ideias, incluindo crenças religiosas ou ausência de crenças.
Há muitos esforços importantes sendo despendidos para que nos aproximemos de melhores mensurações da ideia de sustentabilidade. A medição do Produto Interno Bruto (PIB) dos países está sob implacável crítica por suas grandes fragilidades.
Em resumo, nessa balança, em que pesam avanços extraordinários e questões fundamentais não resolvidas, acrescenta-se, afinal, o outro tema que estará no centro da história do século XXI: a crise ecológica global e o desafio de se construir uma civilização fundada no desenvolvimento sustentável.
Por conta do impacto da crise ecológica global sobre a economia mundial e, principalmente, sobre o bem-estar e a liberdade das pessoas, em especial das centenas de milhões mais pobres, vulneráveis e sem recursos de defesa, a espécie humana enfrentará nas próximas duas décadas desafios que podem ser considerados inéditos, se tivermos em vista os termos do horizonte temporal em que serão feitas nossas escolhas. Em quanto aqueceremos a temperatura média do planeta no futuro (entre 2 e 5 graus Celsius)?; provocaremos imensas mudanças climáticas?; que percentual (entre 10% e 30%) das espécies vivas no planeta serão extintas para sempre?
A escolha é nossa e deve ser feita agora: ou seremos uma humanidade que permanecerá na desmedida e no egoísmo da “infância” ou ampliaremos nossa consciência no tempo, gerando uma revolução do pensamento tal como aquela que o Renascimento representou para a história.
O conceito de sustentabilidade nos remete assim à necessária expansão das fronteiras do tempo, à ampliação das categorias temporais com que costumamos considerar as gerações do futuro, mesmo as mais distantes. Como observou notavelmente o escritor Jean-Claude Carrière, o termo “desenvolvimento” é etimologicamente inequívoco em várias línguas. Desenvolver não significa apenas “ampliar, crescer”, mas sim “des(fazer) o que está envolvido”; ou “‘des(arrolar) o que está arrolado”; ou ainda, em francês e inglês, “développer/to develop”, isto é, “des-envelopar”. Trata-se, portanto, de um processo no qual um potencial que está contido, preso em determinadas circunstâncias da história, é libertado. Ou seja, trata-se de um processo definido pelo tempo.
A escolha é nossa e deve ser feita agora: ou seremos uma humanidade que permanecerá na desmedida e no egoísmo da “infância” ou ampliaremos nossa consciência no tempo, gerando uma revolução do pensamento tal como aquela que o Renascimento representou para a história.
Para Santo Agostinho existiriam três tempos: o tempo presente das coisas presentes, o tempo presente das coisas passadas e o tempo presente das coisas futuras. À nossa espécie caberia agora o maior desafio do século XXI: construir um ser humano capaz de ser, ver e agir por todos esses tempos.
A questão do desenvolvimento sustentável se confunde então com a questão da consciência humana. A pergunta “O que é o desenvolvimento sustentável?” poderia ser lida também na pergunta “Quem é o ser humano?”. E a resposta para a pergunta sobre o que poderá ser o desenvolvimento sustentável poderia ser também a resposta sobre quem será o humano do amanhã que o próprio ser humano construirá.
1 Sigmund Freud, “A pszihoanalyzis egy nehézségéröl” [Uma dificuldade no caminho da psicanálise], Nyugat, Budapeste, jan 1917.
2 Stephen Jay Gould, “Conseguiremos concluir a revolução darwiniana?”, in Dinossauro no palheiro, São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
3 O Cretáceo é o último período da era Mesozoica e está compreendido entre 145 milhões e 65 milhões e 500 mil anos atrás, aproximadamente.
4 Peter Ward, O fim da evolução: extinções em massa e a preservação da biodiversidade, Rio de Janeiro: Campus, 1997.
5 Ibid., p. 321.
6 Sérgio Besserman, “Darwin e a consciência no século XXI”, in Charles Darwin: em um futuro não tão distante, São Paulo: Instituto Sangari, 2009.
7 Jean-Claude Carrière, Entrevistas sobre o fim dos tempos, Rio de Janeiro: Rocco, 1999. 8 Santo Agostinho, Confissões, trad. J. Oliveira Santos e Ambrósio de Pina, col. Os Pensadores, São Paulo: Nova Cultural, 1996.
José Augusto Pádua
Alexandre Kalache