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O amanhã
de todos
no cérebro
de cada um
- Suzana Herculano-Houzel é neurocientista e professora associada da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), onde dirige o Laboratório de Neuroanatomia Comparada. Formou-se em biologia pela UFRJ, fez mestrado na Case Western Reserve (EUA), doutorado na Pierre et Marie Curie (França) e pós-doutorado no Instituto Max Planck (Alemanha), em neurociências. É autora de diversos livros para público geral de artigos científicos. Também escreve periodicamente para o jornal Folha de S.Paulo.
“Quem vive de passado é museu.” A expressão, de teor pejorativo, é usada na nossa cultura para condenar o apego ao passado, a supervalorização daquilo que já passou e a dificuldade de seguir adiante. Para quem costuma usar muito a frase, uma advertência: todos nós vivemos de passado. E isso é positivo. Mais que positivo: a capacidade que temos de revisitar constantemente o passado, a partir de nossas memórias, é fundamental para vivermos o presente e projetarmos o futuro. É de acordo com essa projeção para o amanhã, baseada no ontem, que tomamos melhores decisões hoje.
Essa capacidade de representar o passado, o presente e o futuro é obra do córtex cerebral humano, com seu notável número de neurônios inigualado na natureza e organizado em arquitetura complexa, que nos dota de habilidades cognitivas admiráveis e nos permite muito mais do que reagir a estímulos. Graças a ele, temos não só passado e futuro como ainda somos capazes de representar o outro, seus sentimentos, emoções e intenções, o que nos permite viver em sociedade e vislumbrar um amanhã comum.
Mas qual a base dessas habilidades? Como funcionam? De que maneira as usamos? Com que objetivos e resultados? Que futuro podemos construir a partir delas?
Na linha do tempo, o que temos de mais palpável é o presente, nossa experiência empírica do aqui e agora. O presente é obra dos sentidos, que mantêm o cérebro atualizado sobre o que se passa em nosso corpo e à nossa volta e, assim, lhe permite construir e reconstruir constantemente uma representação do real no tempo presente.
Esse processo ocorre em vários níveis, de forma simultânea. Os órgãos dos sentidos, sensíveis a variações de energia no ambiente e no corpo, processam e transmitem informações sobre elas ao cérebro. As regiões sensoriais representam essas variações construindo verdadeiros mapas do ambiente e do corpo que se combinam a outras regiões do cérebro, para criar um mapa único, que guia nossos movimentos e comportamentos. É assim que nossas ações são bem ajustadas ao momento, às circunstâncias atuais, ao presente. Ainda outras regiões do cérebro lançam mão dessas representações do real para fazer uma “representação da representação”, que é como criamos conceitos de algo: a cadeira para a qual viramos as costas, o rosto de quem acabou de sair. Uma vez que esses conceitos podem ser ativados na ausência do objeto externo, temos aqui a base para o pensamento abstrato e também para a evocação do passado e do futuro.
As representações que construímos do mundo exterior, contudo, não são perfeitas, posto que necessariamente limitadas pelos próprios sentidos e influenciadas por nossas expectativas e experiências anteriores. Abelhas enxergam luz ultravioleta, à qual nossos olhos são insensíveis. Cobras detectam radiação infravermelha, enquanto nós precisamos de óculos de visão noturna. Campos eletromagnéticos interagem com nosso corpo, mas não os registramos sensorialmente, como fazem peixes elétricos e pássaros. Ou seja, só captamos parte da informação sensorial do mundo exterior. Além disso, a maneira como interpretamos essas informações sensoriais depende de experiência prévia e estado mental. Uma mesma frase pode ser interpretada de maneiras diferentes por pessoas diferentes, dependendo do seu humor e expectativas; um mesmo objeto pode ser reconhecido mais ou menos rápido, e com mais ou menos detalhes, por pessoas diferentes, dependendo da maior ou menor familiaridade com eles.
Além disso, nossas experiências passadas, nosso estado emocional presente e nosso objetivo para o futuro distorcem o mundo real, ao qual nunca temos acesso de fato. Nossa “realidade” é, na verdade, uma versão particular, personalizada, do mundo real, construída pelo cérebro conforme ele representa o ambiente sensorial. Sendo assim, mesmo vivendo em um mesmo mundo, pessoas diferentes compartilham realidades e presentes diferentes.
À primeira vista, o fato de nosso sistema sensorial ser limitado e influenciável pode parecer uma desvantagem. Mas não é. Detectar estímulos do ambiente e a eles responder objetivamente é uma coisa tão simples que até bactérias e amebas podem fazer, e com uma célula só. Mas esse não é o tipo de vida que a gente leva. Nossas ações são direcionadas, e não apenas responsivas. Um indivíduo que só detectasse estímulos e a eles respondesse, ainda que de forma coordenada e organizada, viveria eternamente no presente, incapaz de enxergar para trás ou para a frente no tempo. Não teria a menor capacidade de reviver experiências do passado e muito menos de usar essas experiências a fim de fazer planos para o futuro. Pior ainda, passaria o tempo correndo atrás dos acontecimentos, já que a representação que o cérebro cria a partir das sensações é necessariamente defasada em ao menos um décimo de segundo. [1]
Nossa “realidade” é uma versão particular, personalizada, do mundo real, construída pelo cérebro conforme ele representa o ambiente sensorial.
A vida é pontuada por uma série de experiências e eventos, alguns mais, outros menos marcantes. Acontece que a própria ativação dos neurônios que representam essas experiências no cérebro modifica os neurônios ativados e suas conexões, sobretudo quando os acontecimentos representados são emocionalmente significativos. A consequência é que o cérebro fica com uma memória daquele evento guardada em seu novo padrão ligeiramente alterado de conexões e ativação. Cada acontecimento tem o potencial de mudar o cérebro. Esse processo de modificação conforme a experiência é o aprendizado; a consequência dele, evidência de que o aprendizado aconteceu, é a memória.
As memórias, contudo, são de vários tipos e possuem tempos diferentes de armazenamento. Muitas, geradas por acontecimentos pouco impactantes e consideradas pouco úteis, se apagam quase instantaneamente, abrindo espaço para novas memórias. Outras, no entanto, sobretudo aquelas que se associam a outros fatores importantes do nosso repertório e são acessadas com mais frequência, podem durar a vida toda. Recordar é mais do que viver; recordar é reforçar as memórias, é nos tornarmos cada vez mais nós mesmos. [2]
Temos um “passado” graças à capacidade do cérebro de aprender e formar memórias. Mas a memória é muito mais do que um banco de dados. O acúmulo de registros do passado faz de nós indivíduos únicos, dotados de personalidade, autobiografia e valores próprios. Quando perdemos os registros importantes do nosso passado, perdemos a essência da nossa individualidade. Na doença de Alzheimer, por exemplo, o apagamento da memória autobiográfica desfaz a história pessoal e, assim, dissolve o indivíduo. O paciente fica sem um passado do qual viver e sem um futuro para projetar. Resta-lhe apenas um presente sem sentido, em que até os parentes, desprovidos de uma âncora cerebral no passado, deixam de ser familiares.
A capacidade de projetar o amanhã, ou melhor, diferentes possibilidades de amanhãs, dá sentido ao presente e é crucial para direcionar nossas decisões. Evocamos o passado na hora de reagir aos estímulos no presente; passado e presente moldam nossa antecipação dos eventos futuros.
Antecipação é fundamental, pois se esperássemos os eventos acontecerem para só então reagirmos a eles, muitas vezes agiríamos tarde demais. Goleiros de futebol sabem bem disso. Com cerca de meio segundo para reagir a um pênalti, eles precisam se antecipar ao chute do jogador se quiserem agarrar a bola. Um tenista também se antecipa ao saque do adversário, posicionando-se no local onde estima que a bola vá chegar instantes antes do saque. Esse “poder” de antecipação não é exclusividade dos atletas: antecipamos eventos o tempo todo no nosso dia a dia, e como um tenista ou goleiro treinado fazemos isso de forma tão automática que não nos damos conta. Uns chamam de intuição, a neurociência chama de predição do futuro com base no passado.
O acúmulo de registros do passado faz de nós indivíduos únicos, dotados de personalidade, autobiografia e valores próprios. Quando perdemos os registros importantes do nosso passado, perdemos a essência da nossa individualidade.
Para tomar decisões mais complexas, o cérebro consegue ir além da antecipação automática. Acontecimentos têm valor emocional, que servem como pesos na balança das decisões. O hipocampo, com acesso a várias partes do córtex cerebral, gera uma “memória do futuro” a partir de projeções de memórias passadas. Outras partes do cérebro acessam essas projeções e as representam como objetivos e metas; outras, então, traçam estratégias de ação. No cérebro, o futuro começa no passado.
As chances de um evento terminar mal – com a reprovação em um exame, por exemplo, ou enchentes cada vez mais graves e constantes – nos afligem graças à capacidade que o cérebro tem de apreender e atualizar probabilidades e calcular antecipadamente a chance de erros, problemas e conflitos. Essa apreensão antecipada é a ansiedade: a capacidade que temos de nos preocupar desde hoje com o que talvez venha a ser um problema amanhã. O lado ruim da ansiedade é a chance de perdermos o controle emocional e ficarmos sufocados e paralisados por expectativas negativas. Mas o lado bom é que, antecipando acontecimentos ruins, podemos agir para evitar que se concretizem, ou ao menos nos preparar para lidar com eles de uma maneira melhor se eles de fato acontecerem.
Expectativas positivas, contudo, são realmente motivadoras – inclusive a expectativa de resolver um problema antecipado. Projeções positivas acionam o modo de recompensa do cérebro, responsável pela sensação de prazer que, associada a uma ideia, a transforma em desejo. Os desejos, por sua vez, são a base da formulação dos objetivos. Ou seja, vislumbrar coisas boas nos motiva a agir, a ir atrás dos nossos desejos e passar à ação. [3]
Temos um cérebro totalmente equipado para desejar um amanhã melhor e agir em prol dele. Mas isso não basta. Sem um plano de ação, um objetivo não passa de um desejo.
Temos , portanto, um cérebro totalmente equipado para desejar um amanhã melhor e agir em prol dele. Mas isso não basta. Sem um plano de ação, um objetivo não passa de um desejo. Sem as três coisas bem alinhadas, não somos mais capazes ou livres do que amebas reagindo ao sabor dos acontecimentos. Precisamos de desejos para ter objetivos; de objetivos para guiar nosso comportamento; e de estratégias adequadas para agir hoje em favor do objetivo desejado. Para isso também é fundamental encontrar motivação no amanhã, ou seja, vislumbrar algo de positivo que faça o esforço valer a pena.
Mas ainda há um detalhe: objetivos, estratégias e ações individuais não garantem um amanhã melhor para todos. A sociedade precisa estar em harmonia quanto aos seus desejos e motivações para planejar um futuro comum.
É também graças a um cérebro que processa não apenas nosso estado emocional mas também o dos outros que conseguimos viver em harmonia e preocupados com o amanhã uns dos outros. Nossas decisões levam em conta não apenas o impacto antecipado das nossas escolhas sobre nosso próprio futuro imediato e distante, mas também sobre os outros e suas emoções.
Conseguimos nos colocar no lugar dos outros graças à empatia: a capacidade do cérebro de representar automaticamente e sentir as emoções alheias, o que permite ao nosso cérebro levá-las em consideração. Observar a expressão de emoções no rosto alheio já basta para o nosso cérebro imitar interiormente a emoção do outro e assim identificá-la.
Mas projetar a reação emocional do outro às nossas próprias ações também funciona, ativando as mesmas áreas do córtex que representam emoções nossas e alheias. Aqui, uma diferença – que faz toda a diferença! – é que, enquanto a empatia é automática, colocar-se sistematicamente no lugar do outro antes de tomar uma decisão é algo que podemos nos esforçar para transformar em hábito. Pensar nos outros é algo que nosso cérebro sempre pode fazer, mas fazê-lo de fato é algo que se pode escolher – e facilita enormemente a boa convivência social.
Conseguimos nos colocar no lugar dos outros graças à empatia: a capacidade do cérebro de representar automaticamente e sentir as emoções dos outros, o que permite ao nosso cérebro levá-las em consideração.
E, com um pouco mais de esforço, podemos ir ainda além. Estruturas localizadas no lobo temporal do córtex cerebral nos tornam capazes de formar uma representação do ponto de vista alheio e, a partir disso, inferir suas intenções: formar uma “teoria da mente alheia”, extremamente importante para o julgamento social (avaliação das ações alheias como certas ou erradas) e para a vida em sociedade de maneira geral. É graças à capacidade de levar as intenções dos outros em consideração que atingimos a tolerância, entendendo por que alguém agiu ou pensou de certa forma, e podemos agir tendo em vista um mesmo objetivo, crendo que outras pessoas compartilham esse objetivo conosco.
Viver em sociedade é complexo – e ainda bem. Pessoas diferentes têm temperamentos, gostos, histórias de vida e crenças morais, políticas e religiosas diferentes. A diversidade é enriquecedora e ainda cria uma multiplicidade de futuros possíveis. Agir em favor de um amanhã harmonioso e positivo para o maior número possível de pessoas envolve necessariamente o cultivo, no presente, de bons hábitos de pensar no próximo, adotar seu ponto de vista e compreender suas intenções. Assim como não vivemos sozinhos, também não construímos nosso amanhã sozinhos. Mas temos todos algo em comum: a capacidade de usar nosso passado para agir em prol de um futuro melhor.
- 1 Daniel Wegner, The Illusion of Conscious Will, Cambridge: MIT Press, 2002.
2 Daniel L. Schacter, Os sete pecados da memória: como a gente esquece e lembra, Rio de Janeiro: Rocco, 2001.
3 Suzana Herculano-Houzel, Fique de bem com seu cérebro, Rio de Janeiro: Sextante, 2007.
Paulo Vaz