Antropoceno - um novo capítulo da História
José Augusto Pádua*
Quando estudamos a história humana, de forma aberta e não dogmática, logo percebemos que ninguém tem um controle prévio e absoluto sobre o destino das novas palavras e conceitos que aparecem em determinados períodos, seja de maneira anônima ou autoral. A apropriação social desses conceitos pode sofrer uma expansão mais lenta ou mais intensa. Mas eles também podem ser esquecidos, recuperados e ressignificados nos mais diferentes contextos. Pensemos, por exemplo, na longa e caleidoscópica história dos múltiplos usos da palavra “democracia”. Ou então na palavra “ecologia”. Criada em meados do século XIX, no âmbito da zoologia, apenas no final do século XX ocorreu uma explosão no seu uso público, saindo dos muros da academia para penetrar na política, nas relações internacionais, nas mudanças comportamentais, na indústria cultural etc. A forte expansão na apropriação social de uma palavra, de um conceito, aliás, deve ser observada com toda atenção, pois costuma indicar que ela se relaciona com alguns dos anseios, perguntas e dilemas fundamentais que estão sendo vividos em cada momento da história.
A palavra “Antropoceno” também está sofrendo uma ampliação no seu uso social, adquirindo novas dimensões que não são incompatíveis nem excludentes em relação à proposta original dos seus criadores. A ideia inicial se insere na estratigrafia, defendendo que ocorreu uma mudança de época na escala de tempo geológico do planeta: do Holoceno ao Antropoceno. Tal proposta, como se sabe, está em debate na comunidade científica, com o rigor e a prudência que devem existir nesses assuntos. A pergunta é: existem provas objetivas de uma mudança de época, com a ação humana se tornando efetivamente uma força geológica? Na discussão sobre o tema, inclusive, existe uma polêmica sobre os limites da Geologia e de suas instituições acadêmicas para fazer esse julgamento, considerando que grande parte das mudanças se referem ao mundo vivo, à perda da biodiversidade planetária, que não está inserido no campo próprio da investigação geológica.
Ocorre que a palavra Antropoceno - ao mesmo tempo em que continua o debate formal acima mencionado - vem trilhando um caminho paralelo e inesperado, sendo cada vez mais usada como um conceito histórico, como a sinalização de uma transformação radical que vem ocorrendo na história da humanidade. De fato, um novo conceito estava faltando para dar conta do que está acontecendo na história global, especialmente no século XX. Palavras fundamentais como “modernidade” e “globalização” já não estavam sendo suficientes para analisar essa transformação, especialmente por não enfatizarem a sua dimensão ecológica. Pode-se dizer que a grande novidade da história contemporânea é ecológica: a radical absorção do planeta na história humana e da história humana na dinâmica do planeta. Uma mudança histórica que já está bem documentada e não dependente necessariamente da decisão formal sobre a nova época geológica.
O aspecto essencial da análise histórica do Antropoceno, ao meu ver, está em chamar atenção para o que está sendo denominado de “Grande Aceleração”: a enorme mudança no patamar quantitativo da presença humana no planeta a partir de meados do século XX. É claro que essa mudança não pode ser dissociada das revoluções industriais que ocorreram a partir do século XVIII, produzindo uma “grande transformação”. O uso massivo de combustíveis fósseis, por outro lado, está na base material de ambos os fenômenos. Mas os ventos da industrialização se transformaram em um furacão a partir de 1950. Entre 1800 e 1950, por exemplo, a população global cresceu de 1 para 2,5 bilhões de pessoas. Mas nos últimos 67 anos pulou para mais de 7,5 bilhões! Assim como o número de veículos motorizados pulou de 40 milhões para mais de 1 bilhão. A reprodução cotidiana da vida humana, mesmo considerando as enormes diferenças existentes nos padrões de produção e consumo das diversas regiões e classes sociais, passou a depender da continuidade diária de fluxos gigantescos de matéria e energia, produzindo consequências inéditas no plano ecológico.
O ponto fundamental, portanto, é que não se pode pensar a história humana da mesma maneira que se pensava antes da “Grande Aceleração”. Por outro aspecto, ao assumir o Antropoceno como um conceito histórico, saímos do plano exclusivamente global em que a estratigrafia geológica trabalha para pensar as manifestações diferenciadas desse novo momento histórico nos vários países e regiões. O debate sobre o Antropoceno passa a existir também de maneira situada e localizada, levando em conta a grande diversidade geográfica, cultural e social que a vida humana apresenta. O grande desafio, nesse sentido, é justamente o de identificar as complexas conexões existentes entre o global, o nacional e o local no âmbito dessa enorme mudança histórica que estamos vivenciando e pelejando para entender melhor.
* José Augusto Pádua é professor do Instituto de História da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e consultor do Museu do Amanhã.