Carioca, o rio do Rio | Museu do Amanhã

Carioca, o rio do Rio

Observatório do Amanhã
Foto do Rio Carioca

Silvana Gontijo*
 

“Acreditamos ser preciso cada vez mais, associar conteúdos acadêmicos às vivências dos estudantes. Causas relevantes despertam o interesse de crianças e jovens pelo aprendizado acadêmico e pelo exercício da cidadania.” - Virginia Ferrara, pedagoga.
 

Quando em outubro de 2014 pensamos em recuperar o primeiro rio urbano do Brasil, essa parecia uma utopia. Só que não. O movimento “Carioca, o rio do Rio” surgiu de uma inquietação da equipe do “planetapontocom”. Nossa organização, cuja missão é desenvolver soluções inovadoras para a educação pública brasileira, há algum tempo vem implementando uma série de iniciativas para “capturar” a atenção dos nossos estudantes e engajá-los na aventura do conhecimento. Tarefa cada vez mais complexa levando-se em conta que competimos com as mais instigantes experiências touches ou clicáveis, embarcadas nos diferentes devices do mundo digital.

Além de incorporar essas mídias e suas linguagens no nosso fazer pedagógico percebemos que era preciso mais. Em primeiro lugar, romper com o rigor das disciplinas em suas caixinhas separadas e desenvolver metodologias e estratégias inter e transdisciplinares. Ao mesmo tempo, era fundamental inspirar nossas crianças e jovens para o exercício da cidadania e motivá-los a se engajar em projetos de transformação social. Foi aí que criamos um conceito que é hoje um princípio orientador de todas as nossas iniciativas: a educação com e através de causas.

A primeira delas e a mais votada por nossa audiência foi a preservação, recuperação e uso consciente de nossos recursos hídricos, nossas águas.  Como dar concretude a essa questão? Toda criança sabe hoje que precisa fechar a torneira enquanto escova os dentes - o que significa usar a água de forma consciente. Mas como fazer alguma coisa para recuperar e preservar nossos mananciais? Foi então que vislumbramos, por ocasião dos 450 anos da cidade, a oportunidade de salvar o rio de sua fundação, o rio de todos os cariocas. Rio esse que, por alguns séculos, foi a principal fonte de água potável de seus moradores e de abastecimento dos navios que aqui aportavam: o Carioca. Motivados a redescobri-lo, nossos estudantes foram à luta, literalmente.  

Pesquisaram, e descobriram muitas histórias encantadoras. Para começar o nome e suas quatro versões para explicar a etimologia da palavra carioca.  Depois foram constatando que os primeiros chafarizes da cidade eram servidos por suas águas cristalinas e às quais os Tupinambás atribuíam o pode de embelezar as mulheres que nelas se banhavam e conferir mais virilidade aos homens que a bebiam. Descobriram também que a maior obra de engenharia, da América Latina, no século XVIII foi a construção do aqueduto da Lapa usado para levar as águas do rio até o largo junto ao Mosteiro de Santo Antônio. 

Ali, foi instalado o grande chafariz a que se deu o nome de Chafariz do Largo da Carioca, para abastecer a cidade que crescia desde o Morro do Castelo. Mas o que mais os surpreendeu foi descobrir um legado de valor inestimável: a grande estiagem de 1860 gerou uma crise de abastecimento e justificou o replantio da maior floresta urbana do mundo, a Floresta da Tijuca. E finalmente, entraram em contato com a realidade atual e viram que desde 1905, o rio corre subterraneamente na maior parte de seu curso, onde são lançados esgotos in natura de forma clandestina. Esse mesmo rio que fornecia agua potável aos habitantes do Rio, os cariocas, hoje esquecido e abandonado é usado como lixo e esgoto por esses mesmos moradores.


Como resolver esse problema? Resolvemos nós, os adultos, entrar em cena e começamos visitando todas as escolas públicas e privadas situadas na bacia do Carioca. Quase todas se engajaram na defesa do rio e seus docentes foram estimulados a trabalhar esse tema, interdisciplinarmente.

Pessoalmente participei de muitas atividades como algumas feiras de ciência, exposições de arte, mostras de trabalhos de crianças e jovens usando uma variedade de formas de expressão: música, poesia, teatro, desenho, vídeo, texto. Nessa fase, vimos que para avançar das ideias e informações para uma ação transformadora e concreta precisávamos integrar outras forças ao nosso grupo original. Convidamos para encontros os representantes das associações de moradores de todos os bairros da mesma bacia. Todas se juntaram a nós. Depois levantamos o que chamamos os “apaixonados pelo Carioca” escritores, historiadores, fotógrafos, músicos, cineastas, artistas plásticos, designers, atores, acrobatas e o principal, os técnicos: sanitaristas, biólogos, hidrologistas, urbanistas, engenheiros florestais, urbanistas, engenheiros civis, economistas, comunicadores, especialistas em patrimônio histórico e cultural e ecologistas de diferentes áreas.

Na sequência convidamos a imprensa e foi aí que o movimento ganhou visibilidade e força. Hoje o Carioca, o rio do Rio, é um movimento da sociedade civil organizada, que luta pela recuperação e renaturalização do rio que dá nome a quem nasce na cidade do Rio de Janeiro. Foram muitas atividades e também muitas conquistas. Realizamos mais de 40 encontros e dois seminários que resultaram na definição de um plano de ação e em metas a serem alcançadas. Mapeamos e reunimos em um acervo próprio documentos, teses, artigos, mapas, fotos, vídeos e podcasts sobre a história e o monitoramento socioambiental da bacia. Conseguimos a canalização dos esgotos da parte visível do rio, fizemos três mutirões de limpeza dos resíduos sólidos, levantamos as condições do patrimônio histórico e cultural e hoje, em parte graças ao nosso trabalho, o reservatório da Mãe D’água está sendo restaurado. Empreendemos inúmeras ações de educação ambiental e recentemente conseguimos o tombamento do rio Carioca como patrimônio histórico e cultural, em parceria com o INEPAC. Nesse momento, estamos entrando em alguns editais para viabilizar iniciativas voltadas para replantio, educação ambiental, saneamento e projetos urbanísticos.

Meus amigos Lais Sonkim, José Paulo Azevedo, Maria Lobo, Monica Bahia Schlee, Antonio Carlos Guedes, Alexandre Pessoa e Raul Luedemann, todos voluntários, seguem dedicando sua energia e seu tempo de forma generosa e altruísta e me inspiram, a cada vez mais seguir em frente e entregar para nossa cidade o seu mais relevante patrimônio hídrico totalmente recuperado. Mas a maior conquista, a meu ver, foi o aprendizado significativo de nossas crianças e jovens que, além de aprender geografia, história, língua portuguesa e ciências da natureza, química e biologia protagonizaram esse processo de transformação social: o salvamento do rio Carioca. E descobriram, na prática, que também podem mudar o mundo defendendo suas causas. 

Vamos em frente e, como diria o Betinho, o tripé mídia, cultura/educação e sociedade civil organizada é imbatível.

*  Silvana Gontijo é escritora e jornalista especialista em mídia e educação.

O Museu do Amanhã é gerido pelo Instituto de Desenvolvimento e Gestão – IDG, e conta com patrocinadores e parcerias que garantem a manutenção e execução dos projetos e programas ao longo do ano. O projeto é uma iniciativa da Prefeitura do Rio de Janeiro, concebido em conjunto com a Fundação Roberto Marinho, instituição ligada ao Grupo Globo.