Baía de Guanabara e a agonia da pesca artesanal
Por David Soares, sociólogo e doutor Psico-Sociologia e Ecologia Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)
Seria impossível escrever a história da pesca no Brasil sem um capítulo especial sobre a Baía de Guanabara. No período colonial, pescadores portugueses vieram ao país e se fixaram na área do Caju, desenvolvendo a primeira colônia de pesca brasileira (Amador, 1997). A Baía de Guanabara tornara-se, desde cedo, palco de relevantes inovações técnicas da pesca, nas quais a contribuição de portugueses e espanhóis foi significativa. Eles introduziram técnicas como a rede de cerco e o arrasto de portas na região da Baía, influenciando a cultura pesqueira em outras regiões do país.
Com a criação do entreposto de pesca da praça XV em 1938 e as facilidades de implantação de fábricas de sardinha em conserva, a pesca na Baía se modernizou, passando por progressivas melhorias em motorização e equipamentos de apoio. Este processo resultou em uma diminuição dos barcos a remo, que predominavam até os anos 1930. A modernização, entretanto, não fez desaparecer por completo os pescadores de canoas. Os denominados pescadores artesanais subsistiram, apesar da desigual competição em que foram lançados em uma região que se urbanizava e se industrializava rapidamente.
Os pescadores artesanais atualmente compõem a maioria do universo pesqueiro da região. Utilizam pequenas e médias embarcações motorizadas ou a remo, e aparelhos de pesca com moderada sofisticação tecnológica, tais como redes de arrasto, cerco e espera, caniço e linha-de-mão. Os desembarques de uma importante produção pesqueira ocorrem ao longo de toda a orla da baía, em pelo menos 42 comunidades pesqueiras (Jablonski et. al., 2002). Estima-se uma produção da pesca artesanal de aproximadamente seis mil toneladas anuais (Jablonski et. al., 2002), que se tomadas em conjunto às doze mil toneladas da pesca industrial, representam a participação da Baía de Guanabara em mais de 30% da produção estimada para todo o Estado do Rio de Janeiro.
Nota-se que as comunidades situadas no interior da baía, caracterizadas por uma pesca artesanal bem marcante, são aquelas que utilizam artes mais diversificadas (Gradim, Itaoca, Mauá, Ilha do Governador). As comunidades situadas nas áreas mais poluídas (Ramos e Caju) exibem o menor número de artes de pesca utilizadas, operadas principalmente fora da Baía. Comunidades da margem oriental (Jurujuba e Ilha da Conceição) são dedicadas a uma pesca comercial, ainda que em modelo artesanal. As comunidades de Copacabana e Itaipu são consideradas da área de abrangência da Baía de Guanabara, por situarem-se nas duas extremidades de sua zona estuarina; contudo, as artes de pesca utilizadas caracterizam uma pesca oceânica e de característica cada vez mais recreativa.
Coexistem atualmente pelo menos seis diferentes sistemas pesqueiros na região, incluindo: 1) a pesca da sardinha boca-torta e savelha, com destinação industrial; 2) as diferentes pescarias artesanais, voltadas para a tainha, corvina, bagre, espada, parati e outros peixes, envolvendo a maior parte do contingente de barcos e pescadores e a totalidade dos currais; 3) a pesca do camarão, com sazonalidade bem marcada, entre setembro e janeiro; 4) a coleta do caranguejo nos manguezais existentes ao fundo da Baía; 5) a pesca do siri, com o auxílio de puçás, visando ao processamento pelas "descarnadeiras" e, finalmente, 6) a coleta de mexilhões, nos costões rochosos da baía oceânica, também direcionada ao processamento.
Apesar dessas descrições há enorme desconhecimento sobre as verdadeiras condições da pesca artesanal na região. O contingente total de pescadores envolvidos na atividade pesqueira é um bom exemplo desse desconhecimento e das controvérsias suscitadas. Alguns dados, como os fornecidos pela Federação de Pescadores, indicam a existência de aproximadamente 22 mil pescadores artesanais, organizados em 5 colônias. Todavia, outras fontes, como o Ibama (Soares, 2012) afirmam a existência de 3 mil pescadores artesanais atuantes no estuário. O hiperbólico contraste de dados deve-se, sobretudo, à falta de interesse social em estudos sistemáticos sobre a atividade, à dificuldade de categorização de pescadores artesanais em ambientes urbanos complexos e, ainda, às disputas por benefícios, como o auxílio-defeso, ou o direito a indenizações esperadas dos processos judiciais, impetrados pelos pescadores em razão do derramamento de óleo no ano de 2000.
Uma competição dura e duradoura vem sendo travada pela pesca artesanal em razão do desenvolvimento desordenado da região, com a vertiginosa urbanização da cidade do Rio de Janeiro e dos municípios circundantes, desde a segunda metade do século XX. Tratam-se de 10 milhões de pessoas e 14 mil indústrias em seu redor, 14 terminais marítimos de carga e descarga de produtos oleosos, dois portos comerciais, diversos estaleiros, duas refinarias de petróleo, mais de mil postos de combustíveis e uma intrincada rede de transporte de matérias-primas, combustíveis e produtos industrializados permeando zonas urbanas altamente congestionadas. Esse processo transformou a Baía de Guanabara em um dos ambientes costeiros mais poluídos do mundo.
Nas visões dos pescadores, contudo, seu maior opositor é a poderosa indústria de petróleo e gás. Desde a construção da Refinaria de Duque de Caxias, em 1960, passando pelo derramamento de óleo, no ano 2000, e contemporaneamente com a construção de inúmeras linhas de transmissão subaquáticas ligadas ao Complexo Petroquímico do Rio de Janeiro (Comperj), essa indústria vem produzindo vazamentos frequentes de metais pesados e óleo, poluição hídrica e sonora, diminuindo consideravelmente o volume e a qualidade do pescado, e restringindo a área reservada à atividade pesqueira.
Estima-se que atualmente restem somente 12% do espelho d’água da Baía disponíveis para à pesca artesanal (Chaves, 2011).
Em virtude da precarização de suas formas de vida e trabalho, nas duas ultimas décadas tem surgido um forte movimento social de resistência desses pescadores artesanais contra a expulsão gradativa a que vem sendo submetidos. Nesse processo, inúmeras associações de pesca foram criadas. No desenrolar dessas lutas, os pescadores vêm denunciando as inúmeras e invisíveis agressões ambientais, enquanto demarcam a importância de seus grupos, que com saberes e culturas tradicionais também compõem as camadas de história da Baía de Guanabara.
Referências
AMADOR, E. S. Baía de Guanabara e Ecossistemas Periféricos: Homem e Natureza. Rio de Janeiro: Edição do Autor, 1997. 539 p.
JABLOSNKI,S.; AZEVEDO, A; MOREIRA, L.; SILVA, O. Levantamento de dados da atividade pesqueira na Baía de Guanabara como subsídio para a avaliação de impactos ambientais e a gestão da pesca. Rio de Janeiro:IBAMA; 2002.
CHAVES, C.R. Mapeamento Participativo da Pesca Artesanal da Baía de Guanabara. Dissertação (Mestrado em Geografia) – Universidade Federal do Rio de Janeiro, Centro de Ciências Matemáticas e da Natureza, Instituto de Geociências. 2011.
SOARES, D. G. Conflito, ação coletiva e luta por direitos na Baía de Guanabara. 2012.171 f. Tese (Doutorado em Ciências Humanas -Sociologia) – Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2012.