Convivência e tecnologias no século XXI: há desafios!
Por Eduardo Alves*
A convivência na cidade é um processo, uma conquista a ser construída, uma espiral de encontros com diversidades, diferenças e criações. É importante iniciar o diálogo afirmando que convivência não é sinônimo de tolerância. Ainda que vivamos uma onda de intolerância no mundo e no Brasil, a superação deste desencontro conservador e anacrônico não é a tolerância, mas a convivência. Sempre mais que aceitar, sempre mais que um “tudo bem” no canto da boca. Precisa-se elevar o respeito e pavimentar o conflito na cidade com as possibilidades de síntese, crescimento, superação e aprendizagem mútuas.
Elemento fundamental para isso é a superação das desigualdades. Superar desigualdades econômicas, sociais, de acesso às artes, ao conhecimento historicamente acumulado, à mobilidade plena (corporal e simbólica), é um grande desafio. O compromisso de colocar a vida acima do lucro e garantir a vida com dignidade para todas as pessoas precisa ganhar a escala das ações fundamentais. Assim sendo, a estrada a ser seguida precisa apostar nas diferenças e superar as desigualdades.
Assim, identificar a favela como lugar de potência é o principal registro de que as pessoas que compõem este território são artesãs de ações criativas e inventivas. São ambientes nos quais jorram práticas de superação de suas condições de vida e seus habitantes conquistam centralidade na cidade. Portanto, identificar estes territórios pela carência, invisibilidade, violência, ou pelos termos negativos que percorrem a imprensa formal ou o poder político é um grande equívoco que precisa ser superado.
Para isso, todos os instrumentos, meios, caminhos e linguagens que envolvem as novas tecnologias precisam ser profundamente lapidados no uso para a liberdade. E nesse processo, o celular, que hoje é um computador de mão e não apenas um telefone, ocupa papel central.
Trata-se do objeto que mais está entre a cabeça e as mãos das pessoas. Nas ruas, nas casas, no trabalho, nos eventos de entretenimento, nas ações artísticas, nos estudos, nos transportes, dirigindo, nos relacionamentos interpessoais. O computador de mesa passou a ter a importância antes ocupada pelo rádio e pela TV, mas hoje, o instrumento mais utilizado pelas pessoas é o computador de mão.
Desde sua chegada na década de 90, a web trouxe dois elementos-chave para pensar e utilizar a favor da vida nos nossos dias: o upload e a linguagem multimídia digital.
Articular a convivência com as tecnologias da informática e da internet com disposição de as utilizar para ampliar o alcance, o volume da fala, a diversidade das narrativas e fortalecer a disputa que já existe na cidade é um grande desafio do nosso tempo. Isso é construir um sentido que tenha mais do que valor de mercado – e que possa ser utilizado a favor da vida em forma, conteúdo e estética.
Ressalta-se a importância de dois registros centrais: a) conflito não é sinônimo de guerra, de destruição do outro e da outra. Conflito marca as relações humanas, o que fazemos delas, como agimos, nossos objetivos. Ele é produto de disputas ideológicas e de visões de mundo; e b) tecnologia não é sinônimo de informática e de internet.
Geralmente, quando se fala em tecnologia, pensa-se que o assunto diga respeito, quase que exclusivamente, a computadores e internet. Mas podemos arriscar que o prelo de Gutemberg fez o primeiro upload conhecido pela humanidade, quando criou a possibilidade de multiplicar os textos impressos. A questão é: utiliza-se a informática e a internet para que, por que, com quais objetivos e finalidades? Essas questões continuam mais vivas que nunca e afetam profundamente a forma como convivemos.
O upload hoje promove uma mudança radical, pois, não apenas os grandes meios de comunicação constroem narrativas, imagens, vídeos, acontecimentos e notícias. Multiplicou-se o número de pessoas que podem subir suas análises, olhares, posições sobre vários temas. Ou seja, os telespectadores e o ouvintes, que antes só recebiam as informações, limitavam-se ao download, conquistaram novos espaços e a possibilidade de novas centralidades na disputa da cidade.
A multimídia, que articula várias linguagens em um único produto, permite a compreensão da mensagem e dos sentidos independentemente de onde as pessoas estejam. Ela também se colocou como grande novidade – e pode ser usada para ampliar a possibilidade de se conquistar uma cidade de direitos.
Claro que essas tecnologias podem ser usadas para quaisquer objetivos. Mas garantir a vida, a dignidade humana, o acesso pleno ao conhecimento, a ampliação da voz das periferias e a conquista de uma cidade de direitos são desafios a serem perseguidos. E o Observatório de Favelas, com seus 16 anos de existência, é uma organização que atua para superar tais desafios; tanto com a construção de conhecimentos novos, como com a formulação de políticas públicas para para ampliar direitos.
Para isso, várias ações foram realizadas: a Escola Popular de Comunicação Crítica (ESPOCC) é um exemplo, principalmente com o impacto dos trabalhos de conclusão de curso dos estudantes – JMV, Juventude Marcada para Viver, OnLaje e Favela 3D, que lacraram esse processo; os mapas coletivos de auto identificação e visibilidade da periferia em toda a cidade, presentes no Solos Culturais e no Maré das Artes; a pesquisa “Direito à Comunicação e Justiça Racial”, com vários insumos para pensar a superação do racismo; as publicações do IHA – Índice de Homicídio na Adolescência, que além de apresentar o quadro da violência letal, ainda indicou políticas públicas para superar essa desigualdade mórbida; a publicação Uma Ficção Adolescente, que apresenta uma história que dialoga com os jovens. Produziu-se assim, vários repertórios para melhor pensar e atuar, no contemporâneo, para superar as condições atuais das desigualdades.
As fotografias do Imagens do Povo, com olhar da favela como potência, apresentam um universo criativo e inventivo como alternativa à narrativa dominante. Hoje, com a participação da campanha Instinto de Vida, marcamos a superação dessa desigualdade mórbida que ocorre por meio da violência letal. Todas estas produções estão disponíveis na página do Observatório de Favelas na web e no Facebook, e marcam o compromisso da organização com a vida, em todas suas dimensões.
Usar as tecnologias para superar as desigualdades e construir ambientes públicos de direitos na cidade são desafios centrais hoje. No Brasil – e no mundo -, o “público” não existe. O Estado é dominado por interesses particulares da elite branca de homens que fazem a operação do poder para ampliar seus interesses. Há um peso contundente, contra a vida, um obstáculo para a convivência, operados fundamentalmente pelo machismo e pelo racismo, que marcam a formação social brasileira, com peso estrutural na sociedade.
Precisamos superar esta realidade criando objetivos universais que movimentem as pessoas em favor dos direitos e da vida. A convivência é um ambiente para ampliar essas possibilidades. As novas tecnologias, por sua vez, são instrumentos que podem contribuir para superar as desigualdades e conquistar uma cidade de direitos.
*Eduardo Alves é coordenador da Escola Popular de Comunicação Crítica do Observatório de Favelas (ESPOCC) e membro da direção do Observatório de Favelas