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Mudanças
climáticas:
a complexa
engrenagem
que desafia a
Humanidade
- Gilvan Sampaio de Oliveira é pesquisador do Grupo de Interações Biosfera-Atmosfera do Centro de Ciência do Sistema Terrestre (CCST) do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). Bacharel em meteorologia pela Universidade de São Paulo (USP), é mestre e doutor em meteorologia pelo Inpe. Autor de livros sobre mudanças climáticas e sobre os fenômenos El Niño e La Niña, publicou também diversos artigos científicos em revistas internacionais e nacionais.
Carlos Nobre é pesquisador aposentado do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), exerce o cargo de presidente da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) e é coordenador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Mudanças Climáticas. Possui graduação em engenharia eletrônica pelo Instituto Tecnológico de Aeronáutica e doutorado em meteorologia pelo Massachusetts Institute of Technology. Participou como autor de vários relatórios do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC), destacando-se sua participação no Quarto Relatório de Avaliação do IPCC, o qual, em 2007, foi agraciado com o Prêmio Nobel da Paz, juntamente com Al Gore. É membro da Academia Brasileira de Ciências, da Academia de Ciências para as Nações em Desenvolvimento (TWAS) e membro estrangeiro da Academia de Ciências dos Estados Unidos.
O planeta é um sistema complexo (que denominamos sistema terrestre), em que muitas variáveis – externas, internas, incluindo ações antrópicas de efeito global – se combinam para produzir as condições climáticas que observamos. Como no mecanismo de funcionamento de um relógio, os componentes do sistema terrestre interagem como uma engrenagem, de maneira constante, sendo difícil isolar a influência de cada um deles.
Quando a radiação solar chega à Terra, ela é recebida pela atmosfera e pela superfície e é convertida em calor e outras formas de energia, produzindo, por exemplo, a circulação dos ventos e as correntes marítimas. Ao mesmo tempo, os diferentes tipos de superfície exercem um papel fundamental na quantidade de radiação solar que será absorvida ou refletida, sejam elas cobertas por vegetação, desertos ou água, neve e gelo.
Uma vez estabelecidos os padrões climáticos de cada região, especialmente os relacionados a temperatura, precipitação e umidade, estes ditam os tipos de organismos vivos que vão proliferar nas diferentes áreas do planeta. De forma recíproca, os seres vivos também vão afetar decisivamente o clima na medida em que recebem e emitem gases de efeito estufa – principalmente as plantas –, entre outras influências que exercem sobre o meio ambiente. Os humanos – com a agricultura e as indústrias – surgem em meio a esse complexo sistema provocando pressão sobre o meio ambiente. Cada um desses fatores, e todos ao mesmo tempo, tem sua parcela de influência sobre as configurações climáticas da Terra.
Para se entender o funcionamento desse complexo sistema planetário criou-se o campo de estudo chamado “ciência do sistema terrestre”, no qual se integram as ciências ambientais, sociais e outras em um contexto único. A meta está em compreender a dinâmica da complexa interação de sistemas naturais e sociais, havendo de um lado a biogeofísica, a biogeoquímica e a biodiversidade e, de outro, os sistemas humanos, como política, cultura, economia, demografia etc. Para melhor observar os elementos físicos que compõem o objeto de estudo dessa ciência, os especialistas costumam classificar as diferentes partes do sistema terrestre nas seguintes esfe- ras, que se sobrepõem e que interagem umas com as outras: fotosfera, atmosfera, hidrosfera, biosfera, criosfera e litosfera.
A hidrosfera é composta pela água, substância mais abundante no planeta que ocupa cerca de 77% da superfície. Ela é formada majoritariamente pelos oceanos, onde a dinâmica das correntes marinhas distribui o calor pelo globo e ajuda a tornar habitáveis diversas regiões. Os oceanos são, também, os maiores responsáveis por prover a atmosfera de vapor d’água – esta, por sua vez, o transporta para os continentes, onde ele se transforma em nuvens e chuva que vão abastecer os rios e lagos, além de contribuir decisivamente para a vida em todo o planeta.
Toda a água congelada existente na Terra constitui a chamada criosfera – que é parte da hidrosfera –, que exerce grande influência sobre o clima. Ora, o gelo, por ser de cor clara (branca), é excelente refletor dos raios solares, mas, quando o gelo existente sobre o oceano derrete (em virtude de um aumento da temperatura da Terra, por exemplo), os raios solares que antes eram refletidos passam a ser absorvidos pelo oceano, pois este é mais escuro. Essa absorção da radiação solar favorece o aumento da temperatura do ar naquela região, induzindo cada vez mais o derretimento do gelo, num ciclo que acelera a redução da área coberta por ele.
Outra importante esfera é a atmosfera, camada de gases que envolve a Terra, cuja composição é um dos elementos-chave do clima. Suas substâncias mais comuns são o nitrogênio (cerca de 78% do volume total de gases) e o oxigênio (aproximadamente 21%). Outras, como vapor d’água, dióxido de carbono, metano e ozônio, apesar de aparecerem em pequena concentração, exercem um papel central sobre o clima, pois induzem o aquecimento natural da superfície do planeta e da troposfera – que é a camada mais baixa e densa da atmosfera – a partir do conhecido fenômeno chamado efeito estufa: quanto maior a concentração desses gases, mais forte é o aquecimento.
Assim como podemos encontrar cinzas de queimadas da Amazônia em plena Antártica, temos certeza de que, se alterarmos as condições de determinada região (em virtude de desmatamentos e queimadas, por exemplo), estaremos induzindo a ocorrência de alterações em outras partes do globo. O planeta está totalmente conectado pela atmosfera e pelos oceanos.
Por meio da dinâmica das massas de ar, a atmosfera é a principal responsável pela distribuição de calor e de chuvas, pois a movimentação de gases não tem fronteiras e influencia todo o globo. O exemplo clássico dessa questão é o fenômeno El Niño (o aquecimento das águas do oceano Pacífico próximo à linha do equador), que tem reflexos no clima de todo o planeta, incluindo o Brasil. Assim como podemos encontrar cinzas de queimadas da Amazônia em plena Antártica, temos certeza de que, se alterarmos as condições de determinada região (em virtude de desmatamentos e queimadas, por exemplo), estaremos induzindo a ocorrência de alterações em outras partes do globo. O planeta está totalmente conectado pela atmosfera e pelos oceanos.
Ao lado da hidrosfera e da atmosfera, o terceiro componente primordial do sistema terrestre é a biosfera, que inclui a vida em suas diferentes formas: plantas, animais, organismos marinhos e terrestres, macroscópicos e microscópicos. Grandes florestas, como a Amazônia, por exemplo, exercem papel fundamental no processo de absorção da água pelo solo e evaporação para a atmosfera, o que contribui para a formação de nuvens e de chuva. Sua influência também é notável no que toca às concentrações de dióxido de carbono – que as plantas absorvem do ar e transformam em oxigênio, durante a fotossíntese.
Por fim, ressalta-se o papel da litosfera, camada sólida mais externa do planeta, que também tem sua importância, sobretudo por meio da liberação de enormes quantidades de energia, gases e aerossóis em fenômenos como as erupções vulcânicas. Além desses, o movimento das placas que formam a crosta terrestre é responsável por configurar, ao longo de centenas de milhões de anos, a organização dos continentes, impactando com isso as correntes oceânicas, os padrões climáticos globais, o ambiente e a composição e distribuição das espécies. Considerando ainda a ação antrópica sobre a natureza, configura-se enfim o enorme desafio para a comunidade científica mundial de responder à pergunta sobre o que está acontecendo com o clima. Como essas mudanças poderão afetar nossa vida, nossa alimentação, nossa saúde e o próprio ambiente ao nosso redor? Existe algo que possamos fazer para minimizar os impactos negativos dessas mudanças?
Há pouco mais de vinte anos, a maioria dos países aderiu à Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre a Mudança do Clima, um tratado internacional para reduzir os riscos do aquecimento global e tratar do inevitável impacto do aumento de temperatura. Em 1997, dezenas de nações aprovaram um adicional ao tratado, o Protocolo de Kyoto, que reconheceu a responsabilidade dos países desenvolvidos em relação aos altos níveis de emissão de gases de efeito estufa por suas atividades industriais e agrícolas e determinou objetivos concretos para reduzir essa emissão no período de 2008 a 2012 – posteriormente prorrogado até 2020.
Essas medidas políticas são uma resposta aos diferentes estudos climáticos realizados ao redor do globo e à pressão da comunidade científica mundial quanto à importância de minimizar as consequências da ação humana sobre as mudanças climáticas. Para o público leigo, a iniciativa internacional mais conhecida na área é, provavelmente, a do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas da ONU (IPCC, na sigla em inglês), um corpo de especialistas que se dedica a compilar dados científicos e sumarizar o avanço do conhecimento sobre mudanças climáticas para fundamentar a tomada de decisões relativas ao tema. Esse órgão, IPCC, conhecido dos meios de comunicação, tem pautado a discussão mundial sobre o clima, seus impactos e as atitudes que podemos tomar para lidar com as questões climáticas.
No Brasil, o interesse pelo tema das mudanças globais foi motivado inicial e principalmente pela importância da floresta amazônica para o clima do planeta, pois era necessário compreender as consequências dessas mudanças para a floresta e para o clima. A partir da década de 1980, parte da comunidade científica mundial voltou os olhos para a região. Até meados dos anos 1990, a maioria dos projetos de pesquisa ali realizados eram liderados por grupos estrangeiros, mas com isso os pesquisadores brasileiros acabaram instrumentalizados para alçar voo próprio, empreendendo projetos bem-sucedidos sobre o tema.
Alguns estudos indicam que parte da Amazônia poderá passar, até meados do século XXI, por um processo de substituição da floresta tropical por savana ou por floresta semidecídua –, o que pode significar um empobrecimento do ponto de vista biológico.
O empenho da comunidade científica internacional em estudos sobre a Amazônia não é mero acaso, claro. A região gera grande receio quando se projetam os potenciais impactos globais a partir do gradual desaparecimento daquela floresta. A Amazônia guarda a maior parcela remanescente de floresta tropical do mundo, desempenhando papel fundamental na regulação hidrológica e do clima de vasta área da América do Sul, além de possuir grande estoque de carbono e excepcional biodiversidade. Apesar disso, sabe-se que mais de 18% da mata nativa já foi destruída. Alguns estudos indicam que parte da Amazônia poderá passar, até meados do século XXI, por um processo de substituição da floresta tropical por savana ou por floresta semidecídua – o que pode significar um empobrecimento do ponto de vista biológico. No entanto, ainda hoje existem poucas análises quanto aos efeitos das mudanças climáticas sobre a biodiversidade. Sabe-se que grandes áreas desmatadas poderiam contribuir para modificar o ciclo hidrológico, o que ocasionaria mudanças climáticas regionais em direção a um clima mais quente e seco. Além disso, se favoreceria a ocorrência de incêndios, com consequências graves para a natureza e as comunidades locais.
Além da degradação da floresta amazônica, outro tema palpitante nos estudos climáticos é o comportamento dos oceanos. Ainda que uma mudança nessa dinâmica seja aparentemente pequena, podem-se produzir grandes variações climáticas em muitas áreas do planeta.
Uma das maiores preocupações está no fator de expansão das águas à medida que se aquecem. As águas das camadas superficiais do oceano já aqueceram cerca de 0,6º C nos últimos cinquenta anos, e o aquecimento vai penetrando lentamente nas camadas mais profundas das águas. Esse aquecimento causa expansão térmica da água e, somado ao volume advindo de derretimento de geleiras que adentra os oceanos, eleva o nível do mar, resultando num preocupante aumento de cerca de dois a três milímetros por ano do nível do mar. Se esse valor pode parecer insignificante para alguns, cientificamente ele representa, ao cabo de algumas décadas, um aumento bastante expressivo. Suas consequências incluem não só a perda de ecossistemas, mas inundações mais frequentes em cidades litorâneas e o aumento da vulnerabilidade a tempestades severas.
Além disso, os oceanos são também responsáveis por absorver cerca de um terço de todas as emissões de carbono promovidas pela ação humana, reduzindo o dióxido de carbono atmosférico da Terra, que está associado ao aquecimento do planeta. No entanto, estudos evidenciam que as mudanças climáticas estão afetando negativamente a absorção de carbono pelos oceanos, pois a água mais quente não é capaz de manter tanto dióxido de carbono como a mais fria, e o aquecimento dos oceanos possivelmente acarretará um aumento nas concentrações do gás na atmosfera. Ou seja, não se sabe ainda por quanto tempo os oceanos continuarão a sequestrar o carbono antrópico nos níveis atuais. Ainda mais preocupante é o fato de a absorção de gás carbônico pelos oceanos resultar em aumento do grau de acidez das águas. A acidificação dos oceanos poderá trazer sérios riscos à vida marinha.
Diante das evidências de como o clima no mundo está mudando, cabe-nos avaliar no presente em que medida é possível conter esse processo – ou ao menos a maior porção dele que ocorre em consequência de ações humanas – e, por outro lado, em que medida devemos nos organizar para enfrentar as consequências de um aquecimento global. Devemos considerar como os países ou cidades poderão passar por desastres naturais mais frequentes, que incluem tempestades severas, enchentes e inundações, secas prolongadas; como tratar doenças trazidas pelas novas configurações climáticas; como adaptar a agricultura às novas condições.
Estudos evidenciam que as mudanças climáticas estão afetando negativamente
a absorção de carbono pelos oceanos, pois
a água mais quente não consegue manter tanto
dióxido de carbono como a mais fria,
e o aquecimento dos oceanos possivelmente acarretará
um aumento ainda maior nas concentrações do gás na atmosfera. Nesse contexto,
No Brasil, um mapeamento da vulnerabilidade das diferentes regiões aos impactos das mudanças climáticas mostrou, por exemplo, que o Nordeste está entre as que mais sofrerão com as consequências não só ambientais, mas também epidemiológicas e socioeconômicas das mudanças climáticas. A projeção é que se agravem problemas como doenças infecciosas endêmicas (malária, leishmaniose, leptospirose, dengue), acidentes por desastres naturais e extremos do clima (escorregamento de encostas, tempestades, inundações), queda da produção agrícola e desnutrição em áreas já afetadas pela insegurança alimentar.
Do ponto de vista da economia brasileira, os resultados preliminares sugerem que a mudança climática terá efeitos negativos para o crescimento do país e o bem-estar humano, embora alguns setores e regiões possam ser positivamente afetados. Além disso, uma questão a ser seriamente considerada é que as mudanças climáticas poderão contribuir para reforçar as desigualdades econômicas regionais no Brasil.
Estudos sugerem que as mudanças climáticas devem ser analisadas em conjunto com a globalização (aumento das conexões entre as pessoas no comércio e na informação), com as mudanças ambientais (degradação dos ecossistemas, redução da biodiversidade e acúmulo de substâncias tóxicas no meio ambiente) e com o enfraquecimento dos sistemas de governança (via redução de investimentos na saúde, aumento da dependência com relação aos mercados e aumento das desigualdades sociais), uma vez que todos esses fatores interagem fortemente e de forma complexa.
Preparar-se e adaptar-se para as mudanças climáticas globais e seus impactos, assim como para mitigar seus efeitos, não é tarefa apenas das altas cúpulas de governantes. Os cientistas acreditam que para diminuir os impactos causados pelas mudanças climáticas através dos cortes das emissões de gases de efeito estufa estas teriam que ser reduzidas pela metade até 2050, com sua eliminação até o final do século – uma meta ousada, mas que pode contar com a contribuição da população. Algumas iniciativas importantes seriam reduzir o consumo de energia, aumentando a eficiência energética, com introdução de mais fontes renováveis de energia limpa, como a solar e a eólica, e utilização de transporte público ou bicicletas; capturar carbono abaixo do solo por uma agricultura sustentável; e preservar as florestas que absorvem o carbono nos solos e nas árvores. Estima-se que cerca de um terço das emissões podem ser reduzidas até 2030 se tais práticas forem adotadas.
Outras atitudes que estão ao alcance de todos são evitar a queima de compostos orgânicos ou lixo de um modo geral; plantar mais árvores e cultivar áreas verdes; reduzir e reciclar o lixo; fazer vistorias constantes nos veículos; economizar água; escolher produtos biodegradáveis; consumir menos carne; diminuir o uso de embalagens; evitar produtos descartáveis; procurar consumir alimentos orgânicos... A lista é longa e, certamente, o cidadão consciente encontrará a maneira de fazer a sua parte.
Alexandre Cherman
Mariana Zayt e Eliana Dessen