TERRA

5 Os
labirintos
do DNA

Você gostaria de saber tudo o que está escrito no seu DNA? Testar quais doenças genéticas podem afetar sua saúde e talvez, no futuro, determinar seu tempo de vida? E escolher quais genes preferiria transmitir ao seu filho e quais deveriam ser riscados do mapa?

O que você faria se decifrasse as informações contidas no seu genoma?

Todos os dias, os geneticistas trabalham sobre a tênue linha do equilíbrio: se não ousam o suficiente, não acessam os novos campos da ciência vislumbrados a partir do sequenciamento do DNA; se ousam demais, ultrapassam os limites da ética.

Diferente dos resultados encontrados em exames clínicos, como os que medem a taxa de colesterol ou glicose no sangue, as alterações encontradas em um teste de DNA não mudam. São marcas para toda a vida. Assim, o resultado de um exame genético pode causar grande impacto em nossa vida, afetando relações familiares e decisões sobre reprodução. Antes de divulgar um diagnóstico ou anunciar uma condição genética, portanto, é fundamental discutir as implicações desse saber, o porquê de se querer saber, o que será feito com as informações obtidas.

Para isso é necessário considerar primeiro quanto de nossas características dependem de nossos genes e quanto do ambiente. Para algumas, os genes são determinantes, ou seja, não sofrem influência do ambiente (a definição do grupo sanguíneo, por exemplo). Para outras, o ambiente é determinante (a alfabetização, por exemplo). Mas para a maioria das características há uma interação entre os genes e o ambiente, ativando ou silenciando genes. Entender o papel de cada um é crucial para interpretar um teste genético, manipular o ambiente (por exemplo através da dieta em pessoas com tendência a diabetes) e, no futuro, os genes, de modo a alcançar as metas desejadas.

Conforme diz o biólogo norte-americano Edward O. Wilson [1], “pai” do termo “biodiversidade”, a biologia não é uma ciência linear, mas tridimensional. E em três dimensões também deve ser a leitura do código da vida, o DNA. Segundo o cientista, “a primeira dimensão é o estudo de cada espécie em todos os níveis de organização biológica: da célula aos organismos, às populações, ao ecossistema. A segunda dimensão é a diversidade de todas as espécies da biosfera. E a terceira dimensão é a história de cada espécie, compreendendo tanto a sua evolução genética como as mudanças ambientais que orquestraram a evolução”.

Grande parte do futuro da biologia depende de uma abordagem interdisciplinar que permita uma viagem por essas três dimensões. O ponto de partida não é simples, nem mesmo quando se examina uma célula. Diferente de um “saco de moléculas”, uma célula consiste num sistema biológico em funcionamento, tem componentes básicos – como DNA, RNA e proteínas – e tem as interações entre esses componentes e deles com o ambiente. A propriedade emergente desse sistema biológico – definida a seguir – é a vida.

Essa consciência de um todo maior do que a soma das partes marca a biologia do século XXI. Ao contrário das teorias reducionistas do passado, hoje emerge uma biologia de sistemas, cujo objetivo é explicar como comportamentos complexos surgem a partir de coleções de componentes mais simples. Tal conhecimento viabiliza, por sua vez, a biologia sintética, cuja meta é recriar um sistema químico não natural com propriedades de sistemas vivos, incluindo herança genética e evolução.

Todos os sistemas biológicos são complexos, são como labirintos vivos, pirâmides cheias de corredores, salões e segredos para serem decifrados. Os sistemas não são lineares e, quando seus componentes individuais interagem, criam propriedades e funções denominadas emergentes. Essas propriedades só podem se manifestar se o organismo for visto como um todo, caso contrário seria como perder-se no labirinto tridimensional, sem perceber a pirâmide.

Mesmo as formas mais simples de vida têm propriedades emergentes imprevisíveis, apresentando enigmas para a engenharia tradicional. A compreensão do comportamento dos sistemas biológicos, em seus vários níveis de organização, depende do estudo das complexas interações dinâmicas entre seus componentes. Isso pede modelos matemáticos detalhados da estrutura bioquímica e biofísica dos sistemas, para se experimentar simulações e – talvez – chegar às previsões almejadas.

Em 2001, publicou-se o primeiro rascunho do genoma humano. Em 2003, dois anos antes do previsto, Francis Collins e Craig Venter anunciaram o fim do sequenciamento do genoma humano, embora ainda haja novos genes sendo descobertos. Mas entender como os genes funcionam, como interagem, entre si e com o ambiente, é pesquisa para mais cem anos.

A definição dos genes que entram em funcionamento ou são silenciados, por exemplo, depende de vários fatores denominados epigenéticos que ainda são objeto de muitas pesquisas. Eles podem variar de acordo com o tipo de célula ou com a idade. Genes que se expressam na vida embrionária ou em fases de crescimento, por exemplo, podem estar silenciados na fase adulta. Uma mesma mutação genética pode determinar uma doença genética em um indivíduo, enquanto em outro as condições para ativar esse gene talvez nunca aconteçam. Entender o que protege algumas pessoas dos efeitos deletérios de uma mutação é de grande interesse porque poderá resultar em novos tratamentos.

Em 2001, publicou-se o primeiro rascunho do genoma humano. Em 2003, dois anos antes do previsto, Francis Collins e Craig Venter anunciaram o fim do sequenciamento do genoma humano, embora ainda haja novos genes sendo descobertos. SIBILIDADES

Pessoas com a mesma mutação responsável por uma doença genética podem apresentar quadros clínicos totalmente diferentes, assim como, em outra escala de tempo, na espiral da evolução, ancestrais comuns deram origem a espécies bem diversas. A fonte primária que origina a diversidade é a mutação, isto é, a alteração da sequência do DNA, que pode ser promovida por eventos que ocorrem durante a duplicação do DNA ou causada por agentes mutagênicos, como radioatividade, raios ultravioleta (UV), drogas carcinogênicas.

Sobre as novas sequências, geradas por mutação, atua a seleção natural: a diversidade das formas de vida na Terra originou-se a partir de mutações selecionadas pela maior capacidade reprodutiva no tempo. Do DNA da célula original surgiu a infinidade de formas de vida com as quais compartilhamos a Terra, por meio dos mecanismos de mutação e recombinação.

A dimensão temporal – a história evolutiva – nos mostra como todos os seres vivos são, em maior ou menor grau, aparentados entre si. Algumas porcentagens de semelhança entre as sequências do genoma humano e de outras espécies são impressionantes: temos 95% em comum com chimpanzés, 89% com camundongos; 45% com moscas-das-frutas e até 9% com Escherichia coli, a bactéria dos nossos intestinos. Essa semelhança é indicação da origem comum de todos os seres vivos e possibilita a análise das divergências de uma espécie para outra.

O sequenciamento do genoma é uma maneira de “ler” a ordem em que as bases (“letras”) se dispõem na molécula. Conhecida a sequência de bases – a mensagem contida na molécula – tem início um longo e complexo estudo para analisar e entender seu significado. Computadores e programas especiais são utilizados pelos bioinformatas para predizer a localização dos genes, ou seja, os trechos da sequência correspondentes à informação para a síntese de proteínas.

O passo seguinte é predizer a função dos genes, o que é feito pela comparação da nova sequência obtida com organismos-modelo bem estudados. A comparação de genes de espécies diferentes permite também inferir o parentesco entre essas espécies, estabelecer as relações evolutivas entre elas e determinar a importância dos genes essenciais, conservados através da evolução. Tal comparação ainda pode ser feita entre indivíduos da mesma espécie, porém com funções diferentes, como insetos sociais organizados em castas – formigas e abelhas, por exemplo.

Algumas espécies chegam a constituir um superorganismo formado por organismos interdependentes, que se reúnem para cooperar na resolução de problemas de sobrevivência. A inteligência individual de formigas-correição é mínima, mas juntas elas formam um desses superorganismos. Com inteligência coletiva, marcham na floresta, criando suas próprias vias, matando e devorando tudo à sua frente. No início da noite, amontoam-se de modo a formar um escudo de proteção com as formigas operárias por fora, tendo ao centro as larvas jovens e a rainha. Ao amanhecer, a bola viva se desfaz e o ciclo se reinicia. Não há um controlador central: a inteligência coletiva cria padrões, usa informações e evolui. Nesse caso, a sequência de DNA de cada formiga é a mesma, mas os indivíduos de cada casta assumem características distintas, a partir de alterações epigenéticas, isto é, o DNA adquire “marcas” e alguns genes podem ser silenciados ou ativados.

Os seres humanos também convivem com uma população gigantesca de microrganismos (bactérias, fungos e vírus), a microbiota. Temos dez vezes mais micróbios do que células que já nascem conosco e nos acompanham durante a vida e que também formam conosco um “superorganismo”. O papel da microbiota, que influencia muito nossa saúde, tem sido objeto de inúmeras pesquisas. Compreender as relações entre a informação contida no DNA (genótipo) e o fenótipo (característica) é um objetivo central na genética. O maior desafio está na nossa capacidade de manipular, interpretar e traduzir, em modelos preditivos, a quantidade enorme de dados gerados pelas novas tecnologias de análise molecular (next generation sequencing). Isso requer o desenvolvimento da bioinformática e a criação de gigantescos bancos de dados. Com o desenvolvimento do conhecimento e da capacidade de analisar, a ciência pode ir muito além do diagnóstico. A experiência de clonagem da ovelha Dolly em 1996, por pesquisadores escoceses, demonstrou pela primeira vez que uma célula adulta de mamífero poderia ser reprogramada, voltar ao estágio embrionário e dar origem a uma cópia – um clone – daquele animal. A grande revolução pós-Dolly abriu caminho para as pesquisas com células-tronco (CT), o futuro da medicina regenerativa.

Células-tronco adultas, encontradas no tecido adiposo, cordão umbilical, polpa dentária e medula óssea, entre outros, têm o potencial de formar gordura, cartilagem e osso. Quando injetadas em modelos animais, elas têm se mostrado clinicamente benéficas por seu papel imunomodulador, diminuindo a inflamação, melhorando a circulação sanguínea e melhorando o ambiente tecidual do organismo receptor. Mais que isso: células adultas maduras, retiradas de humanos ou outros animais, podem ser reprogramadas para se transformar em células-tronco pluripotentes induzidas (iPS). Elas têm a capacidade de dar origem a todos os tipos de tecidos. São muito semelhantes às células-tronco embrionárias, mas não iguais, pois guardam “memória” de onde foram retiradas.

Em um futuro próximo, a bioengenharia permitirá fabricar ou “consertar” órgãos em laboratório. Pessoas com problemas cardíacos, por exemplo, poderão ter seu coração retirado, “recauchutado” com tecidos e/ou válvulas regenerados a partir de células-tronco e, então, recolocado. Teremos “oficinas” de reparo de órgãos. Na lavoura, o melhoramento genético das plantas cultivadas já dá uma enorme contribuição à produção de alimentos e ao reforço da resistência contra adversidades climáticas, salinidade, pragas ou doenças. A genética agora trabalha para acelerar esses processos, por meio de marcadores moleculares, transgênicos, clonagem e mesmo genomas sintéticos.

Ao manipular os genomas nesse nível, os bioengenheiros lidam com dezenas de milhares de genes que compõem o DNA de cada ser. Em nosso organismo, cerca de 20 mil genes permitem fabricar todas as proteínas. No entanto, juntos, eles ocupam apenas 2% da molécula de DNA humano. O resto, até muito recentemente, era tratado como “DNA-lixo”: sequências genéticas “inúteis”, cuja função era desconhecida.

Entretanto, de lixo ele não tem nada. Muito pelo contrário. Foram publicados mais de trinta artigos pelo consórcio internacional Encode (Enciclopédia de Elementos de DNA), demonstrando a existência de milhões de “interruptores” nesses 98% do genoma humano. Eles não codificam proteínas, mas servem para ligar e desligar os genes conforme o tipo de célula e a fase do desenvolvimento dos órgãos e tecidos em que se encontram. Compõem um megapainel de controle, ditando quando, onde e em que quantidades os genes devem fabricar as proteínas. Sem esses elementos reguladores da atividade genética, os nossos 20 mil genes seriam apenas fragmentos inertes.

Em um futuro próximo, a bioengenharia permitirá fabricar ou “consertar” órgãos em laboratório. (...) Teremos “oficinas” de reparo de órgãos

Como vemos, o conhecimento pode dar saltos e nos apresentar chaves inesperadas para decifrar os segredos das funções biológicas. O fato deveria nos tornar mais humildes: mesmo sabendo muito sobre o código da vida, isso só nos dá uma pálida ideia das infinitas possibilidades de lidar com os labirintos do DNA.

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