8 Vivendo com microrganismos
- Henrique Lins de Barros é físico, pesquisador titular do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF), professor credenciado do Instituto Carlos Chagas e do Centro de História das Ciências e das Técnicas e Epistemologia (HCTE), ambos da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Possui graduação e mestrado em física atômica pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) e doutorado pelo CBPF. Foi diretor do Museu de Astronomia e Ciências Afins (Mast) e publicou artigos em revistas e livros de circulação nacional e internacional nas áreas de biofísica e história da técnica. Recebeu as comendas da Ordem Nacional do Mérito Científico (2001) e da Ordem do Mérito Aeronáutico (2004), entre outros prêmios.
Somos mais de 7 bilhões de seres humanos vivendo na superfície da Terra, nosso único habitat. Apesar das diferenças de gênero, crenças, cultura e hábitos, somos todos iguais, e ao mesmo tempo cada um de nós é único. Somos capazes de nos adaptar às mudanças, de sentir os estímulos do meio em que vivemos, e apesar de dizer que temos apenas cinco sentidos (visão, audição, olfato, tato e paladar), na realidade temos muito mais. Pode ser que não percebamos conscientemente, mas de alguma maneira sentimos as nuances. Dizemos que nossos olhos são sensíveis a uma gama de cores que vai do vermelho profundo ao violeta, as “sete cores” do arco-íris, porém nosso corpo sente radiações infravermelhas e ultravioleta. Nosso sistema auditivo, assim como o olfato, o tato ou o paladar, é extremamente sensível e nos dá informações sobre o ambiente ao redor. Estamos em permanente interação com o mundo, trocando matéria, energia e informação.
Cada ser vivo que habita a Terra está conectado com o mundo que o cerca. Não existe vida sem relação com todo o resto. O corpo humano não está isolado do ambiente em que vive e necessita dele para manter sua individualidade. Como todos os seres, os humanos estão alterando o mundo, e para continuar vivos precisam adaptar seu corpo e manter sua integridade num meio em constante transformação. Assim, o corpo humano também vive em permanente desequilíbrio interno, ou melhor, em um equilíbrio dinâmico.
Temos alguns trilhões de células que se desenvolveram a partir de uma única célula inicial, fertilizada quando um espermatozoide encontrou o óvulo materno, transformando- do zigoto, essa célula primordial.
Cada um de nós é o habitat para um grande número de organismos microscópicos (microrganismos ou micróbios), que habitam nosso corpo e são vitais para nós. Sem eles não viveríamos, pois eles regulam muitos de nossos processos fisiológicos. Cada um desses microrganismos mede cerca de um milésimo de milímetro de diâmetro – um volume cerca de mil vezes menor que o de uma de nossas células –, mas a quantidade deles num ser humano é tão grande que pesa em torno de dois quilos.
Diminutos organismos produzem proteínas indispensáveis para a nossa sobrevivência (...). Diariamente eliminamos bilhões desses microrganismos e os substituímos por outros, uma vez que a taxa de crescimento deles é espantosamente alta. Essa enorme população de bactérias, arqueias etc. constitui o nosso “microbioma”, o nosso ecossistema interno.
Esses diminutos organismos produzem proteínas indispensáveis para a nossa sobrevivência, participando da digestão de várias substâncias e favorecendo o nosso sistema imunológico. São eles que produzem vitaminas do complexo B-12, fibras solúveis; são eles que limpam nossa pele, os olhos, e estão presentes em vários outros processos vitais. Todo dia eliminamos bilhões desses microrganismos e os substituímos por outros, uma vez que a taxa de crescimento deles é espantosamente alta. Essa enorme população de bactérias, arqueias etc. constitui o nosso “microbioma”, o nosso ecossistema interno. São milhares de espécies diferentes que convivem conosco, distribuídas em diferentes partes de nosso corpo, como a boca, o nariz, os ouvidos, a garganta.
Esses microrganismos tiveram um importante papel na história da evolução. A vida na Terra surgiu alguns milhões de anos após o resfriamento do planeta, há 3,4 bilhões de anos, a partir da combinação dos elementos químicos existentes. Não há um elemento específico da vida, mas sim a organização, num ambiente propício, de estruturas moleculares complexas. Os primeiros organismos eram microscópicos, com uma única célula: precursores das bactérias, eram capazes de metabolizar elementos inorgânicos, transformando-os em moléculas complexas. Há cerca de 1,5 bilhão de anos surgiram os primeiros organismos multicelulares. Assim, a evolução da vida ocorreu através de vários saltos de crescente complexidade.
Essa história é pontuada por diversos períodos de grandes extinções que ameaçaram a vida em nosso planeta [1]. A mais conhecida, mas não a maior, ocorreu há cerca 65 milhões de anos, pondo fim ao reinado dos dinossauros, possivelmente em razão do impacto de um meteorito na península de Yucatán, no México. Outras extinções ocorreram em diversas ocasiões, mas as causas não são totalmente conhecidas. Estima-se que as mudanças no ambiente se devam a atividades vulcânicas, terremotos, aumento ou redução da temperatura, redução do oxigênio nos oceanos, à deriva continental que alterou por completo a superfície planetária e levou a um novo meio não adequado para algumas espécies, que não conseguiram se adaptar. Várias hipóteses têm sido levan tadas e uma delas diz respeito à mudança do campo magnético terrestre.
A Terra possui um campo magnético que a protege das partículas eletricamente carregadas, provenientes do Sol, que incidem sobre o planeta: o vento solar. Esse campo serve de blindagem e sem ele a Terra sofreria os efeitos dessa radiação de forma intensa, e a vida em sua superfície não seria possível.
A descoberta de bactérias que produzem cristais magnéticos diminutos e se orientam em direção ao campo magnético terrestre é um exemplo da interação entre os seres vivos e as condições ambientais. Os trabalhos nessa área mostraram que existem organismos multicelulares procariotos, ou seja, bactérias multicelulares, o que corrobora a ideia de que a evolução se dá aos saltos na direção de um aumento da complexidade da organização biológica, essencial para a manutenção das condições adaptativas.
Estamos imersos num mundo de variados estímulos, e o nosso bioma se adapta ao meio para manter nossa saúde. Dessa forma, sentimos as variações de diferentes fatores que interagem conosco, e o campo magnético da Terra pode estar nos dando informações importantes para nosso equilíbrio dinâmico.
As pesquisas realizadas com grandes telescópios, sondas espaciais e um instrumental sofisticado têm mostrado a existência de uma centena de planetas que orbitam estrelas distintas do Sol, muitos com características semelhantes às da Terra. Essas observações levam à hipótese de se encontrar vida em outros mundos. Estruturas organizadas, capazes de se duplicar, de metabolizar, de manter sua forma, apesar das incertezas do meio, talvez tenham aspecto muito diverso das que conhecemos, e podem ser consideradas vivas: mas uma outra vida.
Toda vez que nos aprofundamos numa área de conhecimento, abre-se um novo campo de maior complexidade, numa sequência que parece não ter fim. A própria origem da vida na Terra é uma questão aberta. Para alguns pesquisadores, dadas as condições propícias a vida brota em pouco tempo. Para outros, a vida é por demais complexa e não surge ao acaso de uma combinação e organização dos elementos disponíveis e, nesse sentido, a vida não se produz facilmente. [2]
Uma das questões fundamentais é que não sabemos caracterizar um organismo vivo. Ele está imerso no entorno e luta por manter sua individualidade.
Após uma longa história, muitas espécies desapareceram, dando lugar a outras, pois o ambiente já não era adequado à sua existência. A vida, porém, continua. É a grande diversidade de formas vivas que garante sua continuidade.
Não sabemos, portanto, definir o que é vida. Para alguns pesquisadores, seria um sistema capaz de se renovar, de regular a própria composição e conservar seus limites [3]. Ou seja, o ser vivo seria um sistema que mantém a individualidade durante sua existência, apesar das mudanças no ambiente. Assim, após uma longa história, muitas espécies desapareceram, dando lugar a outras, pois o ambiente já não era adequado à sua existência. A vida, porém, continua. É a grande diversidade de formas vivas que garante sua continuidade.
Nós, que nos autodenominamos Homo Sapiens Sapiens, aparecemos no cenário da Terra há menos de 100 mil anos, o que é muito pouco se comparado ao tempo de existência de muitas outras espécies animais que habitaram o planeta por algumas dezenas de milhões de anos. Nos últimos séculos, desde a segunda Revolução Industrial, as mudanças no meio ambiente causadas pelo uso indiscriminado de tecnologias têm produzido alterações na composição do ar, das águas, no regime da temperatura, na incidência da radiação solar que chega à superfície do planeta, o que pode levar a um ambiente inadequado para nós e pôr em risco nossa sobrevivência. Talvez estejamos condenados a ser uma das espécies que tiveram pouco tempo de existência.
Se podemos afirmar que somos indivíduos, dotados de um corpo único, é preciso lembrar que somos um composto de muitos organismos invisíveis aos nossos olhos, os quais nos dão sustentação. O microbioma que cada um de nós é também se adapta às condições exteriores e está em permanente transformação, num processo dinâmico, mutável e elástico, mas que tem seus limites. Se o mundo que nos cerca sofrer alterações maiores, poderemos deixar de ser viáveis. É assim a vida na Terra: ela nos conta uma história, porém não sabemos qual será o seu fim.
[1] Henrique Lins de Barros, Biodiversidade em questão, Rio de Janeiro: Claro Enigma/Fiocruz, 2011.[2] Cf. Charbel Niño El-Hani e António Augusto Passos Videira (orgs.), O que é vida? Rio de Janeiro, Relume Dumará, 2000. [3] Cf. Lynn Margulis e Dorion Sagan, O que é vida?, Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002.
Eliane Canedo de F. Pinheiro
Luiz Fernando Dias Duarte