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Todo
amanhã
emerge na
cultura
- Luiz Fernando Dias Duarte é antropólogo e professor de antropologia na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Graduado em direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), mestre em antropologia social e doutor em ciências humanas pelo Museu Nacional/UFRJ. Fez pós-doutorado no Groupe de Sociologie Politique et Morale, da École des Hautes Études en Sciences Sociales, Paris. Entre outros cargos acadêmicos, foi diretor do Museu Nacional da UFRJ de 1998 a 2001. Foi professor visitante nas Universidades de Brasília (UnB), Paris X – Nanterre, Buenos Aires, Liège e Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Entre suas principais publicações destacam-se Da vida nervosa nas classes trabalhadoras urbanas (Jorge Zahar, 1986), e Três famílias: identidades e trajetórias transgeracionais nas classes populares, em colaboração com Edlaine Gomes (FGV, 2008).
O que significa ser humano no século XXI? Para que a imaginação de nosso futuro próximo não seja acanhada, é necessário que incorpore uma visão aberta, abrangente e reflexiva sobre o contexto mais amplo da cultura ocidental moderna – esta em que vivemos. Ela depende, no que tem de melhor, da racionalização do sentido da experiência humana, da expectativa de que a reflexão sistemática, continuada, pública, sobre tudo o que nos afeta possa levar a horizontes da condição humana mais amplos do que aqueles a que todos estamos acostumados.
A ciência tem sido o principal caminho dessa reflexão sistemática desde o século XVII. Suas informações e propostas buscam, desde então, o lastro da experiência empírica baseada numa racionalidade formal, universalista. Isso é relativamente fácil de realizar no que se refere à estrutura do mundo físico e ao funcionamento do mundo orgânico – do que dá prova o vertiginoso desenvolvimento do sistema tecnocientífico, ou seja, o desenvolvimento das ciências físicas e naturais dedicadas à transformação das possibilidades de conhecimento e uso humano dos recursos do mundo.
Não é tão fácil, porém, no que toca às condições específicas da experiência social da vida humana, enovelada na complexidade dos pensamentos, das emoções, dos valores, da história. As ciências humanas se desenvolveram tardiamente em relação às ciências hard por enfrentar desafios muito peculiares: elas devem compreender como se organizam e se processam as condições simbólicas e pragmáticas da vida, naquilo que escapa à determinação direta dos fundamentos físicos e orgânicos dos seres humanos. O próprio estatuto dessa autonomia relativa do pensamento, da linguagem, da vontade, da ação, dos sentimentos é matéria de debate, já que – para muitos cientistas – tudo isso não poderia ser senão uma emanação direta, linear, das propriedades biológicas dos sujeitos (como outrora pensavam os mecanicistas sobre os fenômenos da vida orgânica). As ciências humanas exploram e analisam os modos como se manifestam e funcionam essas propriedades “emergentes”, isto é, aquelas que, embora dependam da existência da realidade material subjacente, apresentam características específicas, funcionam segundo lógicas próprias, envolvem a intervenção da cognição, da imaginação e da vontade no rumo da história. [1]
Ao fazê-lo, devem as ciências humanas enfrentar outro enorme desafio: sua matéria de análise não se encontra distanciada, na lente de uma lupa, de um telescópio ou de um espectrômetro de massa; mas, sim, entranhada na vida imediata de toda a humanidade (tanto dos leigos quanto dos pesquisadores). Estudam fenômenos como a família e o parentesco, a religiosidade e os rituais, o gosto artístico e a disposição científica, os modos de fazer política e os de praticar esportes, os cuidados com a saúde e as atividades bélicas, as formas da sexualidade e as da violência, a experiência do tempo e a organização do espaço. Sobre tudo isso cada cultura, cada coletividade social, tem suas próprias concepções, seus próprios procedimentos – frequentemente muito distintos dos nossos [2]. É da interpretação e da comparação entre essas formas de manifestação dos fenômenos exclusivos do humano que se constroem os saberes sociológico, antropológico, histórico, psicológico.
Esses saberes não se prestam facilmente a um aparelhamento tecnológico, a uma construção de alavancas para o futuro. Sua maior força e sua utilidade residem na crítica que ensejam; ao revelar como se articulam os projetos humanos e como são levados a cabo, em contextos de hierarquia ou de poder, de diálogo ou de dominação, de harmonia ou de predação, de acolhida ou de exclusão.
No contexto de um compromisso com os desenhos do futuro, o papel das ciências humanas deve ser mais o de propiciar uma consciência geral das condições que desencadeiam tal ou qual transformação na vida humana que de oferecer soluções técnicas ou práticas para esses desafios. As violentas mudanças climáticas que já acossam as populações de todas as partes serão certamente aceleradas em nosso amanhã, já que não se alteram as condições de uso dos recursos energéticos nem se moderam as condições do desenvolvimento e da produção econômica. Mas as condições tecnocientíficas para enfrentar esse desafio já existem e estariam disponíveis, caso a consciência política global e a disposição para uma reestruturação econômica radical parecessem viáveis. Os fatores cruciais para o enfrentamento dessa crise são, portanto, tipicamente humanos, mais amplos do que a racionalidade formal poderia esperar: narcisismos nacionais, ganâncias de classe, competição por poder, consumismo e hedonismo.
As profundas alterações na biodiversidade que nos cerca evoluem no mesmo processo das modificações climáticas. O peso da atividade humana na evolução da biosfera contemporânea levou inclusive à proposta de definição de uma nova era geológica: o Antropoceno. Entre o extinto pássaro dodô e o hipercontagioso vírus do ebola se distende a marca do desequilíbrio provocado pela ação humana, exacerbada pela potência tecnocientífica contemporânea. O que se poderia contrapor a isso? Apenas uma mudança dos valores, uma radical reestruturação das formas da reprodução social humana, poderia permitir um amanhã menos devastador.
Entre as características das novas condições de reprodução da humanidade avultam o crescimento absoluto da população e a obtenção de taxas crescentes de longevidade. É claro que esse fenômeno dependeu até hoje dos desenvolvimentos tecnocientíficos gerais – e sobretudo dos da biomedicina. Mas ele não teria atingido as proporções atuais se não tivesse sido perseguido e promovido sistematicamente pelas políticas nacionais desde o século XVIII, interessadas na ampliação numérica e na sanidade qualitativa de suas populações – condições essenciais para o prestígio dos Estados [3]. Atingidos os patamares atuais, desafios imensos se apresentam para além das vaidades do poder político: capacidade de alimentação, de moradia e de saneamento; manutenção de sistemas de seguridade social viáveis a longo prazo; segurança pública – entre tantos outros desafios, bem próximos de nós.
Entre o extinto pássaro dodô e o hipercontagioso vírus do ebola se distende a marca do desequilíbrio provocado pela ação humana, exacerbada pela potência tecnocientífica contemporânea. Apenas uma mudança dos valores, uma radical reestruturação das formas da reprodução social humana, poderia permitir um amanhã menos devastador.
Os avanços tecnocientíficos propiciaram uma aceleração notável nas condições de articulação entre as diferentes unidades organizacionais humanas, permitindo uma intensidade nas trocas sociais (econômicas, informacionais, culturais) absolutamente incomparável às do passado. Não ocorre a ninguém diminuir a importância do advento da comunicação digital e virtual, que catapultou as possibilidades de comunicação a níveis exponenciais. Mas também a ninguém ocorre minimizar a escalada na produção de diferenças e confrontos que tem acompanhado o trajeto da modernização planetária. Essa tensão entre aproximação e distanciamento é muito conhecida dos antropólogos, que a descreveram como princípio da organização social das sociedades tribais africanas e melanésias ainda nos anos 1930 [4]. O desafio é compreender como essa dinâmica se processa no mundo contemporâneo, em que a preeminência dos valores da igualdade, do diálogo e da tolerância, que parecia ter sido tão amplamente reconhecida, é com frequência negada. Pelas vias da política, da religião, da raça, e até da arte e da cultura de massa, tudo parece conspirar para produzir confronto e beligerância, ali onde as condições técnicas e racionais poderiam fazer esperar prevalência de uma paz universal.
É a esse quadro de desafios e dúvidas cruciais, que não podem ser respondidos pela racionalidade científica convencional, que a experiência das ciências humanas pode levar alguma contribuição – apontando para as propriedades universais da condição humana, descrevendo suas formas de apresentação culturalmente específicas e sugerindo que tipo de valores pode permitir o enriquecimento das condições da convivência humana nas próximas décadas. Nenhuma solução mágica, nenhuma bala de prata serve para isso – pois a experiência humana não se altera rapidamente, da água para o vinho. Tudo nela depende da socialização original de cada geração, ela própria dependente da troca entre sucessivas gerações, num trabalho que exige a atenção a cada momento da formação de cada sujeito – ele próprio neto e filho de seus ancestrais; pai e avô de seus descendentes.
Numa cultura como a nossa, comprometida com valores individualistas e utilitaristas, é cada vez mais imperativa a pergunta “estar junto – como se faz?”, que induz à reflexão sobre valores como liberdade, igualdade, tolerância e solidariedade – também, contraditoriamente, construídos em nossa cultura.
Na reflexão sobre as condições culturais de construção do futuro, há três categorias-chave, sem as quais nada se pode compreender da vida humana: sua “variedade”, “complexidade” e “sistematicidade”. A variedade ou diversidade cultural – por exemplo – das formas do parentesco e da família, a complexidade das tramas relacionais em que os sujeitos se instalam ao nascer, a sistematicidade dos padrões e processos em que esses fenômenos (que nos parecem tão privados e singulares) ocorrem são condições inseparáveis da vida social presente ou futura. Nunca será demasiada a ênfase na reflexão sobre o valor da “convivência” humana (das pessoas entre si, e entre elas e seus ambientes). Numa cultura como a nossa, comprometida com valores individualistas e utilitaristas, é cada vez mais imperativa a pergunta “estar junto – como se faz?”, que induz à reflexão sobre valores como liberdade, igualdade, tolerância e solidariedade – também, contraditoriamente, construídos em nossa cultura [5]. Decerto nem todas as culturas comungam desses nossos valores, mas, se bem aplicados, poderão vir a ensejar uma convivência pacífica, útil para todos – mesmo entre as diferenças que continuarão a proliferar.
Compreender como se faz o “estar junto” envolve, enfim, pensar a variedade, a complexidade e a sistematicidade das formas de associação humana (os princípios da troca simbólica, econômica e matrimonial, instauradora do estado de humanidade – por exemplo), de interação (as línguas naturais, as diferentes formas e estratégias da comunicação) e de simbolização (a integração cultural, o compartilhamento de valores, a invenção técnico-mágica e a criação artística). E isso não pode nos permitir esquecer a construção das formas de “mal-estar junto”, as trocas negativas envolvidas no conflito, na violência, na dominação, no sofrimento psicossocial – fenômenos tão variados, complexos e sistemáticos como os do bem-estar (além de muito mais frequentes).
Enfim, se tratando de tudo isso – e de muito mais coisas que a nossa razão concebe e põe em prática graças à imaginação social – o futuro a ser desenhado poderá ser realmente o que queremos, ou seja, quando soubermos um pouco mais como e por que queremos o que queremos. A partir de reflexões sistemáticas sobre a emergência do amanhã, as ciências humanas poderiam desempenhar um papel mais significativo para efetivar a vontade humana no mundo. Nosso comum amanhã depende dos valores, dos sentimentos, das disposições culturais que fazem a humanidade, aqui e ali, herdar, inventar, desvirtuar, destruir ou aperfeiçoar tal ou qual instrumento, recurso, arma, maquinário, gadget, ídolo, brinquedo...
[1] Marshall Sahlins, Cultura e razão prática, Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003.
[2] Roque Laraia, Cultura: um conceito antropológico, Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997.
[3] Michel Foucault, “A política da saúde no século XVIII”, in Microfísica do poder, Rio de Janeiro: Graal, 1979.
[4] Alfred Reginald Radcliffe-Brown, Estrutura e função na sociedade primitiva, Petrópolis: Vozes, 1973.
[5] Louis Dumont, O individualismo: uma perspectiva antropológica da ideologia moderna, Rio de Janeiro: Rocco, 2000.
Henrique Lins de Barros
José Augusto Pádua