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Oceanos,
a nova
fronteira
humana
- David Man Wai Zee é professor adjunto da Faculdade de Oceanografia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj). Possui graduação em engenharia civil pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, mestrado em Coastal and Oceanographic Engineering pela University of Florida e doutorado em geografia ambiental pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). É presidente do Conselho Consultivo da ONG Defensores da Terra e vice-presidente da Câmara Comunitária da Barra da Tijuca-RJ.
Com uma população superior a 7 bilhões de ha- bitantes, a Terra já apresenta sinais preocupantes de superexploração de seus recursos naturais, considerados hoje no limiar do esgotamento. A humanidade busca novas fontes de recursos e consegue “esticar” um pouco mais sua manutenção no planeta usando a tecnologia, a criatividade em seu benefício e, infelizmente, valendo-se também do fator da desigualdade social.
Nesse contexto, diante dos limites dos recursos naturais, o futuro impõe a necessidade imperativa de novas opções de fontes de recursos. Nesse horizonte, os mares despontam como manancial para a manutenção humana, por estarem bem mais disponíveis e alcançáveis do que outros planetas, que precisam ser desbravados.
Para se ter uma dimensão de como os oceanos constituem um verdadeiro universo a ser explorado, basta pensar que o ser humano já chegou mais vezes à Lua do que visitou profundidades oceânicas superiores a 3 mil metros. Mais de 80% da área do oceano Pacífico tem profundidades superiores a esta e pouquíssimas vezes as alcançamos. Estima-se que ainda desconhecemos mais de 750 mil espécies marinhas, ou seja, três vezes mais do que conhecemos atualmente.
Uma vez que ainda não sabemos o potencial dos oceanos, a manutenção de serviços ambientais importantes fornecidos pelo mar – como produção de oxigênio, fixação do carbono, produção de alimentos, distribuição do calor no planeta – depende de como vamos conviver com eles. Até o momento, ainda estamos em débito, pois os impactos que produzimos são significativos.
Os próximos cinquenta anos nos parecem decisivos para o ser humano aprender a trilhar caminhos mais amigáveis na sua relação com os oceanos. A humanidade não deve perder a grande chance que tem agora de desenvolver novas tecnologias e de não cometer, no mar, os mesmos erros cometidos nos continentes. O uso dos recursos marinhos com justiça social no futuro depende, portanto, da capacidade humana de saber respeitar os limites de uso e de ciclagem dos elementos naturais.[1]
Nos dias de hoje já é possível notar diversas mudanças em curso nos oceanos: a elevação do nível do mar, da temperatura, a acidificação e a poluição das águas costeiras. Essas transformações graduais podem não nos afetar num primeiro momento, mas deve-se levar em conta que as mudanças bruscas são decorrentes destas. A maior frequência e intensidade de marés meteorológicas, ciclones, chuvas intensas, ressacas e zonas mortas em ambientes costeiros evidencia a agressividade potencial dos mares, daí nossa preocupação com a degradação dos oceanos. Nesse sentido, as próximas décadas podem ser vistas como um período decisivo para a recuperação do passivo ambiental acumulado no século passado (entre os diversos elementos que compõem esse passivo estão o efeito estufa, a sobrepesca, o acúmulo gradual e crescente dos poluentes lançados).
Uma melhor compreensão dos ciclos naturais dos oceanos seria fundamental para promover uma mudança de atitude quanto à nossa relação com o mar. Além dos prejuízos – o que quase sempre acontece –, esses fenômenos pontuais e extremos podem interferir na segurança do ser humano e na relação futura com o mar. Somando mais esforços nas pesquisas, por exemplo, seria possível agir nesse sentido, corrigindo os erros do passado e concretizando a implementação de novas tecnologias.
Um dos primeiros passos na direção de uma mudança de atitude seria percebermos quais reações dos oceanos são evidências de danos e portanto merecem maior atenção. Uma observação importante – que atinge edificações costeiras, portos e mesmo plataformas marinhas com a crescente ameaça de colapso – é o fato de o traçado do nosso litoral estar sendo alterado de forma expressiva, pois eventos de assoreamento ou erosão são observados em vários locais. Também já é uma realidade o risco de inundações nas planícies costeiras, provocadas por flutuações bruscas e pontuais do nível do mar em razão de ressacas e marés meteorológicas.
Para se propor uma nova atitude, as normas técnicas de construção e de segurança precisam ser atualizadas de acordo com o novo cenário climato-oceanográfico que se forma. A médio prazo também se deve atentar para a agressividade da maresia salina (salsugem), que deteriora as edificações costeiras de forma mais acelerada.
Vejam, por exemplo, as praias urbanas, que são ambientes fragilizados pela ocupação humana e pelas flutuações climáticas e oceanográficas. As áreas costeiras do Rio de Janeiro vêm sofrendo um aumento gradual dos impactos decorrentes de ressacas significativas.[2] Observou-se ao longo de 21 anos (de 1991 a 2011) um aumento substancial do número médio anual de ressacas para períodos de três anos. Da mesma forma foi constatado um aumento do número de dias com ressacas significativas, o que indica uma crescente pressão sobre essas praias.
Em termos da diversidade dos impactos, percebe-se ainda uma saturação ao longo dos anos, estando estabilizada em seu máximo nos últimos anos (de 2006 a 2011). Em função dos impactos observados, recomendam-se procedimentos preventivos para evitar a perda da resiliência das praias como estruturas de proteção contra as ressacas. A renaturalização com a engorda e/ou a regeneração da vegetação é uma estratégia recomendada.
No Brasil, as áreas costeiras fragilizadas do Sul (Santa Catarina), Sudeste (Rio de Janeiro) e Nordeste (Pernambuco), em decorrência da densa ocupação antrópica, vão sofrer impactos significativos. [3] Há, portanto, necessidade de adaptação de tais áreas litorâneas para resistir a esse novo cenário climato-oceanográfico. Entre os principais impactos relacionados à erosão costeira estão a redução na largura da praia; o recuo da linha de costa; o desaparecimento da zona pós-praia; a perda de habitats naturais, como praias, dunas, manguezais, restingas; e o aumento da frequência e magnitude de inundações costeiras causadas por ressacas ou eventos de maré muito elevados.[4]
As praias têm como principais tipos de uso o recreativo e o de proteção costeira. [5] Nesse caso, é necessário estabelecer larguras mínimas de praias para promover uma resistência maior contra a ação erosiva das ondas e evitar sua aproximação dos equipamentos urbanos (calçadão, posto salvamar, quiosque, avenidas litorâneas). Entre as medidas preventivas (antecipatórias), a engorda artificial das praias e a recomposição da sua vegetação de restinga são recomendadas. Macumba e Arpoador, no Rio de Janeiro, são exemplos de praias do litoral carioca que ficaram espremidas entre a ocupação antrópica e o avanço do mar. Nesse sentido, percebe-se a importância da manutenção das praias como elemento de adaptação do litoral em face das mudanças climáticas.
As áreas costeiras do Rio de Janeiro vêm sofrendo um aumento gradual dos impactos decorrentes de ressacas significativas. Observou-se ao longo de 21 anos (de 1991 a 2011) um aumento substancial do número médio anual de ressacas para períodos de três anos. Da mesma forma foi constatado um aumento do número de dias com ressacas significativas, o que indica uma crescente pressão sobre as praias urbanas.
Um dos principais parâmetros levados em consideração para a praia como elemento de proteção é a sua largura.[6] No caso das praias urbanas, como as do litoral carioca, torna-se fundamental a formulação de políticas públicas de uso do solo, além de intervenções de longo prazo na manutenção desses sistemas costeiros.
Outro elemento importante é o uso e consumo das águas. Atualmente o ser humano usufrui dos oceanos como área de despejo de efluentes antrópicos, exploração do petróleo e fontes de alimentos, além de transporte. Novos usos, como produção de energia, mineração e fármacos, são possibilidades a serem consideradas. Já a salinização do lençol freático nas zonas costeiras – ocorrência possível em razão do desequilíbrio climático – impediria o aproveitamento dos mananciais subterrâneos de água, piorando a situação da falta de água potável.
O cenário oceanográfico que se projeta desafia a humanidade a investir financeira e politicamente em pesquisa de ponta e também em planejamento e desenvolvimento de estratégias para potencializar o aproveitamento dos recursos naturais. Para deixar de perceber o oceano como local de despejo de resíduos, seria interessante desenvolver seus outros usos benéficos e se preparar não para apenas ocupar, mas também pesquisar novas formas de ocupação sustentável.
Uma boa maneira de aumentar a resiliência das cidades do futuro e o ambiente natural do entorno seria o desenvolvimento de estratégias de gestão costeira que visassem ao melhor aproveitamento do uso do solo, respeitando-se as fragilidades litorâneas e usufruindo com sabedoria de suas potencialidades. Outra estratégia fundamental é o monitoramento da evolução e do comportamento dos oceanos para entender melhor as trocas de energia entre diferentes esferas do planeta: hidrosfera (oceanos), litosfera (continente), atmosfera (ar).
Contamos hoje com algum conhecimento a respeito das mudanças do planeta em função da ação do ser humano. Caberá a nós procurar os meios necessários para reverter esse processo degenerativo nas próximas décadas. Nesse sentido, é preciso assumir o ponto de vista questionador, reflexivo e propositivo. Transformar todos esses dados em informação útil e compreensível para a sociedade, incentivando sua participação e responsabilidade no processo, é extremamente relevante, pois favorece a mudança de atitude em relação à natureza.
Quem sabe os oceanos estejam nos dando a oportunidade de acertar a partir dos erros cometidos em terra, e esta talvez seja uma das melhores alternativas para nós? A existência da humanidade no planeta pode se dar de forma sustentável se respeitarmos a natureza e a considerarmos parceira de jornada. Afinal, não se trata de salvar o planeta, nós é que precisamos nos salvar do que cultivamos até hoje.
- 1 Justiça social aqui é entendida como a capacidade humana de desenvolver usos múltiplos e concomitantes dos benefícios advindos da pesca, da exploração dos recursos minerais, da navegação, do esporte, das fontes de alimentos, do lazer, da ciclagem da matéria orgânica, entre outros, para um maior número possível de atores sociais presentes no espaço marinho.
2 Ressacas significativas são eventos oceanográficos extremos que causam algum tipo de transtorno na funcionalidade urbana ou que são dignas de nota.
3 David Man Wai Zee, “Elevação do nível do mar e adaptação em grandes cidades costeiras do Brasil”, in Mudanças climáticas e eventos extremos no Brasil, Rio de Janeiro: Fundação Brasileira para o Desenvolvimento Sustentável, 2010, p. 52-71.
4 Celia Regina de Gouveia Souza, “A erosão costeira e os desafios da gestão costeira no Brasil”, Revista de Gestão Costeira Integrada, 2009.
5 Alan P. R. Frampton, “A Review of Amenity Beach Management”, Journal of Coastal Research, vol. 26, nº 6, 2010, p. 1112-1122.
6 Idem.
Thomas Lewinson